Santista descobre documentos da polícia dos anos 60 que autorizavam candomblé com restrições

Por Eduardo Velozo Fuccia/Vade News em 08/08/2024 às 16:00

Acervo Pessoal
Acervo Pessoal

Dois documentos descobertos recentemente em Salvador revelam a repressão legalizada que as religiões de matriz africana sofriam do Poder Público. Materialmente, eles estão amarelados e carcomidos pelo tempo. Sob o ponto de vista ideológico, apresentam conteúdo corroído pelo ordenamento jurídico pátrio, que estabelece o estado laico, garante a liberdade do exercício de culto e criminaliza o racismo religioso.

Emitidos na década de 60, durante os governos dos presidentes Jânio Quadros e João Goulart, os documentos têm a paradoxal denominação de “Permissão Grátis”. A pretexto de autorizarem cerimônias de “caráter afro-brasileiro” no terreiro de candomblé do Gantois, eles impuseram condições e restrições aos eventos. Fossem atualmente, essas limitações seriam flagrantes violações à Constituição Federal/1988 e à Lei 7.716/1989.

Embora assinadas por delegados diferentes, que à época comandavam a Seção de Fiscalização do Culto Afro-brasileiro, da Delegacia Especial de Jogos e Costumes, subordinada à Secretaria da Segurança Pública da Bahia, as permissões têm redações bem parecidas. Ambas são dirigidas a Maria Escolástica da Conceição Nazareth (1894-1986) – a ialorixá Mãe Menininha do Gantois, responsável pelo terreiro à época.

Os documentos autorizaram Mãe Menininha a realizar “festas” no terreiro em datas pré-determinadas, mas com as seguintes proibições: consumo de bebidas alcoólicas, presença de menores e uso de atabaques após certo horário. Como forma de deixar claro que tais restrições não eram meramente protocolares, os documentos foram encerrados com a seguinte frase: “Fiscalização a cargo do subdelegado local”.

Resgate histórico

As permissões foram descobertas há cerca de um mês pela santista Luiza Lyra de Carvalho Lima, de 21 anos. Estudante do quinto semestre de Museologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba), ela foi contratada como monitora do Memorial de Mãe Menininha do Gantois graças à Lei Paulo Gustavo, de incentivo ao setor cultural. Durante “rondas de documentação e conservação”, conforme contou, ela achou os documentos.

“Fui verificar um móvel com duas portas e três gavetas no qual Mãe Menininha guardava objetos de uso pessoal. Dentro dele, em um saquinho plástico, estavam as permissões, uma das quais dobrada”, detalhou Luiza. O achado foi comunicado à supervisora da monitora, que se encarregou de informá-lo a Carmen Oliveira da Silva, a Mãe Carmen, filha mais nova de Mãe Menininha e atual ialorixá do Gantois.

Os documentos descobertos já foram catalogados. Agora, eles fazem oficialmente parte do memorial, criado em 1992, cujo acervo possui mais de 500 itens, entre instrumentos usados nos rituais e objetos pessoais de uma das maiores lideranças da religiosidade de matriz africana na Bahia. O espaço fica no quarto que era de Mãe Menininha e está integrado à área sagrada do terreiro, fundado em 1849 e um dos mais antigos do País.

Ialorixá Mãe Menininha do Gantois

Lembranças da infância

“Eu nasci, cresci, presenciei e assisti às lutas de minha mãe e todas as nossas mais velhas, no século XX, para proteger a comunidade do Gantois, e tantas outras, ao se encaminharem à Delegacia de Jogos e Costumes para obter autorização de funcionamento e realização de cerimônias, na tentativa de conter um pouco os abusos do poder local”, relembrou Mãe Carmen.

A atual líder ressaltou o valor da descoberta, porque os documentos comprovam “ações oriundas da escravidão em nome de uma exclusão social dos povos tradicionais”. Segundo ela, o memorial cumpre uma função socioeducativa e político-cultural ao mostrar o legado de tradições do povo negro, “inclusive na contemporaneidade, com a resistência e o combate ao racismo estrutural que nega o direito à equidade”.

Por Eduardo Velozo Fuccia/Vade News

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