Ex-goleiro Ado, que temeu levar o milésimo gol de Pelé, se despede do Rei
Por Folha Press em 30/12/2022 às 17:32
“Só falta ele fazer esses quatro gols em mim hoje.
Era o pensamento que atormentava Eduardo Roberto Stinghen, o Ado, naquela noite de terça-feira, 4 de novembro de 1969.
Vindo do Londrina-PR, recém-contratado pelo Corinthians, o então goleiro enfrentaria o Santos de Pelé no estádio do Pacaembu.
Os quatro gols de que ele fala eram os que faltavam para o Rei atingir aquele que foi registrado como o seu milésimo.
Era apenas o terceiro jogo de Ado pelo Corinthians e ele estava zerado ainda no clube. Os dois jogos anteriores tinham sido vitórias do Timão, ambas por 2 a 0, contra Botafogo e Fluminense.
“Imagina a situação, a pressão que eu sentia. Eu ali, 23 anos, recém-chegado ao clube. Pensei: ‘Tô ferrado, os caras vão me mandar de volta para o Paraná hoje mesmo’. O título de uma reportagem de um jornal sobre aquele jogo foi ‘Ado versus Pelé’. Era muita pressão”, lembra o goleiro, que no ano seguinte seria convocado para a Copa no México como segundo reserva.
Ele esteve na frente do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, após saber da morte de Pelé, nesta quinta-feira (29).
Na Folha, o título de uma das reportagens sobre o jogo naquele mês de novembro de 1969 foi “Pelé já fez 4 no Corinthians”, lembrando um confronto de 1964 que terminou em 7 a 4 para o time do litoral. Na mesma página, um artigo de opinião: “De repente, um ídolo: Ado”.
A partida daquela noite terminou em 4 a 1. Para o Corinthians. E Pelé não marcou.
Naquela partida Ado teve o primeiro contato com Pelé além das jogadas que disputaram.
“Ainda no gramado, ele veio e me disse: ‘Olha, se cuida. Parece que o Saldanha [João Saldanha, técnico da seleção à época] está te observando, disse que você sai bem do gol. Acho que você vai ser convocado’. Eu quase não acreditei”, conta.
Um nó na garganta interrompe a fala do ex-goleiro por alguns segundos. Ele enxuga as lágrimas e continua. “Aquilo me marcou muito, muito”.
Ado só tem elogios para seu antigo carrasco. “Ele era de uma educação, de uma gentileza, de uma humildade… Podia fazer dois, três, quatro gols num jogo, mas nunca zombava do adversário. Nunca o vi menosprezar ninguém”, diz, com a voz embargada.
Ele conta que Pelé sempre foi um incentivador dos jogadores mais jovens, dentro e fora do campo. “Na Copa de 70 ele era animado, pegava o violão, ia tocar no quarto dos companheiros.”
Como reserva, Ado treinava contra o ataque titular da seleção. Ele diz que Pelé sempre o tranquilizava.
Quando havia uma bola dividida, ele sempre evitava o confronto e saltava por cima. “Goleirão, fica tranquilo, não vai ter dividida”, era o que o Rei lhe dizia.
“Para nós, jogadores, Pelé era tudo, era uma inspiração”.
Ado lembra de uma cena antes do jogo contra a Inglaterra na Copa de 1970.
Pelé entrou antes de todos no vestiário, deitou na maca que era usada para fazer massagem, cobriu os olhos com o braço e ficou ali quieto. “Eu acho que ele ficava ali imaginando o jogo, sabe? Aí o Brito [zagueiro do time] chegou pra mim e disse: ‘Não fala com ele agora, ele tá mentalizando o jogo’. Ele tinha essa mania, era muito legal. Parece que ele fazia um prognóstico do que ia ser o jogo.”
E jogar contra ele?
“Não tinha o que fazer. Ele desmontava qualquer esquema que tivesse sido planejado.”
Ado lembra que quando Pelé foi jogar no Cosmos, nos EUA, convidou-o para ir junto. Ele recusou, mas diz que depois se arrependeu. “Poxa, poderia ter jogado com ele lá. Foi pena.”
E os gols que ele poderia ter levado do Rei naquele ano de 1969?
“Se eu tivesse tomado aqueles quatro gols, acho que até o abraçaria no último. Seria até uma honra. Pelé vai ser sempre nosso eterno Rei. Foi irmão, amigo, consultor.