Coroado por Nelson Rodrigues, Pelé foi 'o maior jogador que apareceu, assim no céu como na terra'

Por Marcos Guedes/Folhapress em 30/12/2022 às 12:34

Arquivo/Divulgação Santos FC
Arquivo/Divulgação Santos FC

Se só os profetas enxergam o óbvio, foi Nelson Rodrigues (1912-1980) o primeiro ser iluminado a observar a evidente, clara, manifesta, inequívoca e gritante realeza de Pelé (1940-2022).

Ficou para a história que o menino se tornou rei na Copa do Mundo de 1958, aos 17 anos, ao fazer três gols na França, castigar a Suécia na final e ser assim chamado pela revista Paris Match. Em março daquele ano -portanto alguns meses antes do Mundial-, alguém já havia registrado a realidade ululante.

“Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope”, escreveu Nelson na Manchete Esportiva, encantado com o que havia feito o adolescente na vitória do Santos sobre o America.

“Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: – a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola, e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento”, descreveu.

Não que as hipérboles, as metáforas extravagantes e a estética barroca –como classifica o pesquisador José Carlos Marques, autor da dissertação de mestrado “O Futebol em Nelson Rodrigues”– fossem direcionadas apenas a Pelé. Mas não parece haver dúvida de que nenhum jogador (nem mesmo o ídolo Castilho, que “fazia defesas sobrenaturais”, ou Garrincha, que era “santo, sim, sem efeito de retórica, sem arranjo literário, tão santo como um são Sebastião seminu e flechado”) tenha enchido tanto os olhos míopes do jornalista pernambucano.

Na máquina de escrever de Nelson, “Pelé era uma força da natureza”. “Ele chovia, ventava, trovejava, relampejava. Seus passos eram límpidos, exatos, macios. Ou fazia ou dava os gols”, descreveu, antes de pôr em palavras o que o craque dizia no pé: “O que eram certas jogadas de Pelé se não cínicos e deslavados milagres?”.

Em seu barroquismo, Rodrigues brincava com a ordem estabelecida e via no “crioulo” “o maior jogador que apareceu assim no céu como na terra”. Note que não era assim na Terra como no céu, tal qual se aprende no pai-nosso. “É um jogador humano e divino ou mais divino que humano.”

Até a “grã-fina das narinas de cadáver” percebeu isso. A personagem era aquela que surgia nas crônicas do jornalista perguntando quem era a bola. Mas mesmo a caricatura que não entendia nada de futebol era fascinada pelo camisa 10 do Santos e apareceu no Maracanã em 1969 para ver o gol mil, cruzando o caminho de Nelson.

“Na fila dos elevadores, o meu primeiro olhar descobriu a grã-fina das narinas de cadáver. Vocês entendem? Ela continua não sabendo quem é a bola. Mas o que a magnetizava era Pelé como homem, mito e herói”, escreveu, observando em seguida o furor no momento do pênalti que concretizou a marca histórica.

“E, então, 100 mil pessoas, na gigantesca cadência coral, começaram a exigir: – ‘Pelé, Pelé, Pelé!’. Uma das que mais se esganiçavam era a grã-fina das narinas de cadáver. Uma louríssima suspirou, arrebatada: – ‘Com esse eu me casava!’.”
Pelé celebra gol mil, observado pela grã-fina cadavérica Arquivo – 19.nov.69/Ag. O Globo ** Não surpreende que Nelson tenha partido em defesa de Pelé nos raros momentos de questionamento.

Fortemente influenciado pelo escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), o pernambucano frequentemente evocava o personagem Raskólnikov, de “Crime e Castigo”, que indaga: “Se a alma é mortal e Deus não existe, tudo é permitido?”.

Em escárnio com o amigo Otto Lara Resende, Rodrigues lhe atribuiu a observação: “O mineiro só é solidário no câncer”. Era uma versão pão de queijo do dito de Raskólnikov. Se o mineiro só era solidário no câncer, como teria falado Otto –que sempre negou a frase, para delírio debochado de Nelson–, era possível abrir mão de todos os princípios éticos. É em torno disso que gira uma das mais famosas peças brasileiras, “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária”, adaptada múltiplas vezes ao cinema.

No futebol, o equivalente à inexistência de Deus ou à solidariedade limitada ao momento do câncer era o questionamento a Pelé. Em 1966, quando houve vaias ao camisa 10 e a toda a seleção em uma vitória por 1 a 0 sobre o Chile, no Rio de Janeiro, na preparação para a Copa, o cronista demonstrou sua indignação.

“Pois bem. Se Dostoiésvski estivesse anteontem no Maracanã havia de bramar: – ‘Se Pelé pode ser vaiado, tudo é permitido!'”, escreveu, em O Globo. “Apuparam o negro. E se Pelé pode ser crucificado em vaias, cessam todos os valores morais. Podemos invadir berçários e esganar criancinhas.”

Não que o craque precisasse de ajuda para lidar com detratores e adversários.

“Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha”, escreveu Rodrigues, ainda em 1958, na primeira crônica em que observou a realeza de Pelé.

O tempo passou. A realeza, não.

Nelson insistia que “o tempo é uma convenção que não existe nem para o craque, nem para a mulher bonita”, “existe para o perna-de-pau e para o bucho”. Se, “na intimidade da alcova, ninguém se lembraria de pedir à rainha de Sabá, a Cleópatra, uma certidão de nascimento”, questionar se Pelé estava velho aos 30 não fazia sentido.

De novo, em uma inversão do tipo “assim no céu como na terra”, o jornalista não disse que Pelé era mais jovem do que apontava sua idade. Era mais velho.

“Os seus trinta anos, que parecem valer quarenta, são, em verdade, muito mais. A autoridade com que domina a bola, o adversário e o juiz depende, direi mesmo, de séculos ou, até, de milênios. O sublime crioulo tem de futebol, nem trinta nem quarenta anos, mas 6 mil. Aí está o seu mistério: – é a experiência, é a sabedoria de sessenta séculos.”

“O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma”, observou Nelson. Daí que o Rei continue rei, ainda que seu corpo tenha parado. Pieguice sem tamanho, mas evitar a pieguice é difícil diante do “maior jogador que apareceu assim no céu como na terra”.

Foi com afetação também que Nelson Rodrigues sugeriu que se assistisse à despedida de Pelé da seleção brasileira, em 1971, para ele dramática como “Love Story”, tragédia que fizera sucesso no cinema em 1970.
“Choremos no adeus, como no Love story. Amém.”

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