22/06/2024

O que é MTG, sigla que acompanha hits entre os mais tocados do Brasil

Por Lucas Brêda/Folhapress em 22/06/2024 às 11:48

Freepik
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No último mês, as listas de músicas mais tocadas do Brasil tiveram uma sigla em destaque. O termo “MTG”, uma abreviação de “montagem”, acompanha o título de “Quem Não Quer Sou Eu”, música de Seu Jorge, para designar que se trata de uma outra canção –mas que foi feita a partir da faixa lançada em 2011.

Assinado pelo DJ Topo, a MTG de Seu Jorge, um funk, chegou ao posto de mais ouvida do país no Spotify. E ela não é a única na lista, que também tem “MTG Quero Ver se Você Tem Atitude” –com o samba “Cabide”, de Mart’nália–, “MTG Quero te Encontrar” –com o arrocha “Romance”, de Silvanno Salles– e “MTG Forró e Desmantelo” –com o piseiro homônimo de Manim Vaqueiro–, entre outras.

Em comum, todas essas músicas têm batidas eletrônicas minimalistas e são construídas com trechos das canções originais. Mas apesar desse sucesso de massa no streaming ser recente, as montagens são uma tradição no funk que vem desde os anos 1980, no Rio de Janeiro, e ganhou tração em Belo Horizonte, na última década.

“Antigamente, fazíamos medleys ou pot-pourri”, diz Carlos Machado, o DJ Nazz. Além de comandar picapes, ele se notabilizou por trazer discos e equipamentos de som do exterior –material que moldou a sonoridade do funk no Rio.

Esses medleys eram feitos de forma artesanal, ele diz, usando dois gravadores e cortando e emendando fitas –primeiro, as cassete, e depois as de rolo.

“Você cortava um pedaço da música e ou dobrava, se quisesse estender, ou colava um trecho de outra música. Com dois gravadores, você podia botar uma base instrumental em um deles e ir gravando pedaços de outras músicas no outro.

“O processo era penoso, e não podia ser feito ao vivo. Mudou quando Machado viu um mixer “bonito, cheio de botão” em uma loja na Oitava Avenida, em Nova York.

“Perguntei ao vendedor para que servia, e ele disse que ‘sampleia’. Nunca tinha visto aquilo. Tinha quatro bancos de memória e era muito caro.”

O mixer é usado por DJs para mesclar sons de diferentes fontes –computadores, toca-discos, microfones. O modelo trazido por Machado, da marca Numark, era caro demais, mas não demorou até que ele achasse outro por menos da metade do preço, da Gemini.

“O Gemini é o mixer das montagens, porque custava muito menos. A gente trazia devagar, uns dois por viagem, mas todo mundo comprou.”

A chegada desse equipamento mudou os bailes. “O DJ pôde transformar aquilo que se fazia artesanalmente numa performance alucinante nos bailes –as montagens”, diz Machado. “Descobri a tecnologia e trouxe ao Brasil, democratizei. Depois, vieram os protagonistas das montagens.”

Já entre as décadas de 1990 e 2000, outro equipamento abriu possibilidades para os DJs –as MPCs, ou midi center production. Com 32, em vez de quatro bancos de memória, o cardápio de samples e batidas se multiplicou.

Há dezenas de montagens famosas dessa época, algumas destacando músicas gringas –caso de “Montagem do Sax”, que reproduz o sax de “Your Latest Trick”, do Dire Straits–, outras com trechos de canções nacionais –como “Montagem do Parapapa”, com “Rap das Armas”, de Cidinho e Doca.

Isso sem contar as montagens que utilizam diálogos de desenhos animados ou programas de TV. Há montagens do Pinóquio, dos Power Rangers e a da Chapeuzinho Vermelho e de animais –como a do boi–, entre outras.

No começo dos anos 2000, quase tudo podia virar funk. A “Montagem do Mini Game”, com melodia feita a partir dos sons do famoso console, feito para jogar Tetris, chegou aos ouvidos de Vhoor, DJ e produtor mineiro, quando ele estava na escola.

O jeito de se fazer montagem nessa época, ele diz, influencia o funk até hoje –mesmo que agora as músicas sejam criadas nos computadores.

“É o legado histórico desse jeito de ‘traçar’ um sample”, ele diz. “O ritmo dos cortes no funk é dinâmico e o silêncio entre eles simula uma MPC, uma coisa humana. É um jeito meio mágico de samplear.”
Até a década passada, o funk carioca era a principal referência em Belo Horizonte, mas o gênero se transformou na capital mineira. Tem a ver, diz Vhoor, com a cultura de som automotivo da cidade.

“Enquanto o Rio saiu do Miami bass e foi para o tamborzão, BH procurou o minimalismo e o volume para ‘bater melhor’ no carro.”

Trata-se de um som mais agudo e com menos elementos em relação ao do Rio, portanto com mais espaço para se encaixar os samples. O funk mineiro, diz Vhoor, tem uma cultura de “pontos” –ou seja, samples curtos que, repetidos, geram um ritmo ou melodia.

“Vários produtores de BH têm um milhão de pontinhos, cortezinhos minúsculos de todo tipo de som –bolha, sino, estalar de dedo– e vão fazendo uma montagem a partir disso.”

Essa predileção mineira pela construção de músicas a partir de samples e cortes acabou resultando nas MTGs. Começou como uma sigla e virou um jeito específico de se fazer funk.

O DJ Anderson do Paraíso, referência em BH há uma década e cujo álbum “Queridão” recebeu crítica positiva da “Bíblia dos indies”, o site americano Pitchfork, descobriu as montagens com o DJ Gordinho, da equipe de som Lazer Digital.

“Ele juntava vozes de MCs numa batida dele”, diz o DJ. “Eu ouvia Furacão 2000, que não era montagem, era funk normal. Foi ele que me motivou a começar a produzir.”

Em BH, as montagens viraram sinônimo para esse funk feito com vozes de vários MCs diferentes recombinadas numa mesma faixa, sobre uma mesma base instrumental.

“Eu já fazia montagem por volta de 2015, já com esse nome”, diz Anderson. “A sigla MTG é só uma abreviação, porque às vezes o nome da música era grande e não cabia nos caracteres.”

Nas MTGs, ele usa gravações a capella que os MCs publicam na internet. “MTG é você pegar a voz de vários MCs e juntar numa música só, mas tem que fazer sentido.”

As MTGs viraram febre em BH, especialmente na plataforma SoundCloud, cujos rankings de mais tocadas são até hoje dominados pelo funk da capital mineira. Os temas, na maioria das vezes, são de putaria, o subgênero do funk dedicado a falar de sexo.

Sobre as MTGs mais recentes, as que despontaram no Spotify, Anderson vê uma confusão no uso do termo.

“É meio triste”, ele diz. “O pessoal faz no Rio há muito tempo, a gente traz para cá e faz também. Aí agora querem mudar o nome? Chega a ser sacanagem. Já tem um nome para o que eles fazem –é remix, que é quando você pega a música pronta e só coloca a sua batida.”

Anderson não usa trechos de músicas conhecidas, seja hits gringos ou da MPB. Prefere samples de violinos, pianos ou outras melodias para o instrumental, além das vozes de vários MCs.
De fato, as MTGs que atualmente fazem sucesso no TikTok e chegaram ao Spotify se assemelham aos remixes. No caso da “MTG Quem Não Quer Sou Eu”, do paulista DJ Topo, a voz de Seu Jorge é incrementada por trechos da voz de MC Leozin em “Maldita do Ex”. Teoricamente, pode ser uma montagem, mas pela predominância da faixa do cantor e ator carioca, soa também como um remix.

Essa música conseguiu ter sucesso em uma plataforma mainstream –caso do Spotify– porque foi autorizada por Seu Jorge. Enquanto o SoundCloud e o YouTube, por permitirem conteúdo sem monetização, são mais permissivos a faixas que usam trechos de outras sem autorização, no Spotify essa prática pode gerar a derrubada da música e até o banimento do canal do artista.

De qualquer maneira, esse formato, junto à sigla, pegou. O produtor Gordão do PC usou trechos de “Tropicana”, de Alceu Valença, e WS da Igrejinha recriou “Já Sei Namorar”, dos Tribalistas, enquanto Luan Gomes transformou em funk “Você Não Me Ensinou a Te Esquecer”, de Caetano Veloso, e “Cabide”, de Mart’nália. Todos eles são de Minas Gerais.

Hoje, as MTGs que botam qualquer música, de qualquer gênero, em funk pipocam na internet. A mais recente a fazer sucesso usa “Chihiro”, de Billie Eilish, e foi Criada por Mulú, que além de ser DJ produz gente nova da MPB, como Duda Beat e Gilsons.

De Petrópolis, no Rio, ele lembra que as montagens nos anos 1990 e 2000 eram, de certa forma, um jeito de se fazer um remix. “Você trazia várias músicas para o contexto do baile –seja internacional, infantil, qualquer tipo de som. Era um remix performático.”

Ele acompanhou as MTGs de BH nos últimos anos até que, uns meses atrás, notou que o TikTok estava tomado por funks no estilo mineiro –mais melódico, minimalista, atmosférico– com samples de MPB.

“Chamou a atenção que não tinha putaria”, diz. “Acho que a putaria tem que existir, não sou moralista. Mas é interessante ver as pessoas se conectando com outro tipo de letra e melodia de voz no baile.”

Para Mulú, o uso agora de músicas consagradas acontece também pelo acesso a ferramentas de inteligência artificial que permitem separar a voz do instrumental de maneira mais precisa. Ficou mais fácil criar montagens não só com a capella de MCs, mas também com as vozes de canções famosas.

Ele vê um potencial de exportação dessas MTGs, por serem mais melódicas que os funks usualmente consumidos lá fora –em geral, de sonoridade mais densa e pesada, próximo da música eletrônica de rave.

A “Chihiro” de Mulú fez tanto sucesso no TikTok que, em certa altura, havia três versões piratas dela simultaneamente ocupando o top cem do Spotify no Brasil. Todas, claro, foram derrubadas pela gravadora americana.

O brasileiro já tentou pelas vias burocráticas oficiais a autorização de Eilish para lançar a música na plataforma, sem sucesso. Para ele, a falta de remuneração por essas recriações pode barrar o crescimento das MTGs.

“Nunca tocaria ‘Chihiro’ no ápice de um baile, mas agora pode”, diz. “Eles têm de entender que isso existe, é um mercado. Me dê nem que seja 1%. Façam um ranking de remixes, que não concorram com as originais.”

“Eles não sabem que é difícil entrar em mercados como o Brasil sem uma versão. A música original da Billie Eilish, aliás, voltou a aparecer nos charts daqui depois da MTG. Eu devia receber uma verba promocional da Universal.”

Mas independentemente das questões de mercado, essas MTGs podem causar impacto criativo no funk. “Pode influenciar a criação de músicas originais, sem samples, que tenham mais melodia, nessa pegada mais espacial, com letras mais profundas”, diz Mulú. “A aceitação é muito grande.”

Já para Vhoor, pode significar mais caminhos para quem se fez criando música com um mouse –a partir de samples, sem instrumentos ou teoria musical.

“A coisa ficou tão musical ao ponto que hoje em dia o Seu Jorge está cantando numa MTG”, ele diz. “Esse jeito de se fazer funk, de BH, com sons mais esparsos, acabou abrindo espaço para as melodias. É como o dub, um som desconstruído. Abre possibilidades para a gente utilizar de tudo dentro do funk.”

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