Transplante de medula óssea não tem lista de espera e doação pode vir do exterior
Por Gabriel Alves/ Folha Press em 30/11/2024 às 10:58
A executiva do mercado financeiro Amanda Kai, 42, não tinha qualquer sintoma, apenas um certo cansaço que até então podia ser explicado pela correria no trabalho e em casa, com a família e os filhos. Ao fazer exames de rotina, porém, evidenciou-se uma estranheza no resultado do hemograma. Ginecologista encaminha para hematologista, que, depois de pedir para repetir os exames, interna Amanda e pede uma punção aspirativa de medula óssea. A notícia: leucemia mieloide aguda. Todo o turbilhão em apenas uma semana.
“Foi um susto muito grande. Ninguém espera estar com leucemia, né? Dizia que esse resultado não podia ser meu, que deveria ter sido trocado com o de alguém. Foi um momento muito tenso da minha vida”, relata Amanda.
Logo durante o início do tratamento com quimioterapia, com a imunidade prejudicada, foi infectada por uma bactéria multirresistente, que provocou uma pneumonia severa. “Aí eu fiquei intubada por uns cinco dias, não me lembro exatamente, até que os antibióticos começaram a fazer efeito. Foi tudo muito complexo e tinha um risco grande de morte”, conta.
Para que o sistema imunológico pudesse ser restaurado, apenas com um transplante de medula óssea -que é responsável pela produção das diversas células do sangue, entre as quais as células de defesa, como neutrófilos, que combatem bactérias. Mesmo com a infecção atrapalhando o cronograma, durante a etapa de quimioterapia um potencial doador chegou a ser identificado, mas infelizmente ele ou ela tinha alguma condição de saúde que impedia o procedimento naquele momento.
Especialmente no caso de transplante de medula óssea, é fundamental realizar uma análise de compatibilidade imunogenética entre doador e receptor, baseada no chamado HLA, o antígeno leucocitário humano. O HLA é um conjunto de genes altamente polimórfico, o que significa que varia muito entre as pessoas, tornando cada perfil genético praticamente único.
O HLA permite que o corpo reconheça o que é próprio e o que é estranho, para que o sistema imunológico aponte seu poder de fogo na direção certa. No caso do transplante de medula óssea, a ideia é impedir que o novo sistema imunológico, advindo do doador, ataque o organismo, numa doença conhecida como reação do enxerto contra o hospedeiro, uma espécie de rejeição ao contrário que atinge boa parte dos pacientes, algo como 40%, em intensidade variada.
O doador é identificado a partir de uma análise detalhada do HLA, especialmente de cinco pares de genes. Com base nessa análise, calcula-se o grau de compatibilidade entre doador e receptor. Quanto maior a compatibilidade, melhores são as chances de sucesso do transplante e menores os riscos de complicações.
Depois de algum tempo, veio a notícia de um novo possível doador, com 90% de compatibilidade, notícia que Amanda recebeu com um um otimismo mais comedido do que da vez anterior. Mas dessa vez tudo deu certo e o transplante, que se dá na forma de infusão, aconteceu em agosto no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
Foram 17 dias até a nova medula “pegar”, ou seja, as células-tronco do doador se estabelecerem na medula óssea do receptor e começarem a produzir novas células sanguíneas.
Diferentemente do que acontece em órgãos como pulmão e coração, não existe uma lista de espera no caso do transplante de medula óssea. Existe a chamada disponibilidade de vaga para o indivíduo poder realizar o transplante.
“A chance de encontrar um doador de medula não aparentado é de 1 para 20 mil a 1 para 100 mil, e a busca por esse doador demanda um prazo que varia de dois a três meses. Não é uma competição por um único doador, como acontece com rim ou fígado -aquele doador não aparentado é único”, explica Nelson Hamerschlak, coordenador do programa de transplantes de medula óssea do Einstein.
No Brasil a entidade responsável pela conexão doador-receptor é o Redome (Registro Brasileiro de Doadores Voluntários de Medula Óssea). Com quase 6 milhões de pessoas cadastradas e 30 anos de história, é o terceiro maior registro do mundo e fica sediado no Inca (Instituto Nacional de Câncer), no Rio de Janeiro.
Para maximizar a probabilidade de encontrar um doador, a colaboração entre registros de doadores de diferentes países é fundamental. A World Marrow Donor Association (WMDA) facilita a cooperação conectando os diversos registros, num universo de 42 milhões de potenciais doadores, aumentando as chances de encontrar uma correspondência perfeita.
Em 2023, segundo o Registro Brasileiro de Transplantes, o Brasil realizou 1.694 transplantes de medula óssea que dependiam de doações (alogênicos). Desses, cerca de 30% são internacionais, de países como França e Estados Unidos. No sentido contrário, o país exportou no período cerca de 100 doações, notadamente para os Estados Unidos, mas também para países como Inglaterra, Alemanha, Austrália e Argentina
Como explica Danielli Oliveira, coordenadora do Redome, além das características genéticas, essa exportação também está correlacionada ao volume da atividade transplantadora nos países. “O grande valor do Redome para o cenário internacional, além do número de doadores, é a diversidade genética deles”, afirma.
Ela explica que, no momento, mais do que ampliar o tamanho do banco de doadores do Redome, o objetivo é ampliar ainda mais sua diversidade genética e a chance de sucesso das doações.
“Há publicações que mostram que nós somos um registro diverso, comparado a outros no mundo, mas nós ainda precisamos aumentar a diversidade. O problema é que a diversidade no Brasil é uma questão muito peculiar. Por exemplo, a pessoa pode se declarar branca e ter marcadores de ancestralidade e de HLA de origem africana. Quando a gente vai separar os nossos marcadores com base no HLA, assim, o branco, preto, pardo, está tudo muito misturado.”
Dessa forma, segundo Oliveira, com esse enfoque será possível começar atenuar algumas iniquidades, que não são geradas, mas reveladas pelos dados do Redome: descontando registros sem informação, 59% dos doadores se declaram brancos, assim como 62% dos receptores.
Outra questão é a idade. “Diversas publicações começaram a mostrar que quanto mais jovem o doador, melhor para o doador e também para o paciente -o produto é melhor. Aí alguns registros no mundo começaram a reduzir a idade de entrada de novos doadores. O doador pode doar até 60, mas ele só poderia entrar até 30, 35, 40.”
Apesar de tanto esforço na busca, estima-se que para entre 10% e 15% dos pacientes não se encontre um doador compatível. Ainda que encontre, é preciso ter alguma sorte, especialmente se depender de vaga no setor público.
“Uma vez encontrado o doador, é preciso transplantar, e nem sempre há leito disponível. O nível de atendimento nos hospitais públicos na área de transplante de medula óssea é tão bom quanto nos hospitais privados, mas há maior disponibilidade nos hospitais privados e menor nos públicos. Um dos esforços atuais do Ministério da Saúde é tentar ampliar as vagas por meio do melhor financiamento no sistema público”, diz Hamerschlak.
Segundo levantamento da SBTMO (Sociedade Brasileira de Transplante de Medula Óssea) de julho deste ano e que foi publicado no periódico científico Journal of Bone Marrow Transplantation and Cellular Therapy, mantido pela própria sociedade, 598 pacientes aguardavam transplantes alogênicos -aqueles que precisam de um doador.
E 1.164 aguardavam vagas para autólogos, aqueles advindos do próprio paciente e que é parte do tratamento de condições específicas, como mieloma múltiplo e alguns linfomas, turbinando a imunidade e permitindo que o paciente possa receber altas doses de quimioterapia, aumentando as chances de cura.
Entre os que aguardavam vaga para transplante, 1.015 esperam por uma em centros públicos, 191, em privados, e 556, em centros mistos.
Samir Nabhan, chefe da unidade de transplante de medula óssea do Complexo do Hospital de Clínicas da UFPR (Universidade Federal do Paraná), primeiro centro a realizar um transplante de medula óssea no Brasil, em 1979, lembra da disparidade regional: muitos estados conseguem atender apenas a uma fração da demanda por transplantes.
“Há uma centralização desses leitos no Sudeste e no Sul, e uma dificuldade de acesso mesmo aqui para os pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde). Há estados que não conseguem atender nem a 10% ou 20% da necessidade. E nossa fila não é pelo doador, já que cada um tem o seu, é pelo leito. Se o doador é encontrado, mas não há leito, o paciente fica esperando. A doença volta, e a condição em que ele chega ao transplante é muito pior. Isso quando chega.”
Na raiz disso, ele explica, está uma baixa remuneração pelo serviço, que requer longos períodos de internação. A defasagem se torna mais evidente quando há intercorrências ao longo do tratamento, como no caso da infecção de Amanda.
Neste domingo (1º), aliás, ela completa o crítico período dos 100 dias pós-transplante, no qual teve que ficar relativamente isolada para evitar infecções enquanto o sistema imunológico se restabelece. “Quero ver meus amigos, o restante da minha família, e comer uma pizza de boa qualidade. Esse vai ser meu presente de Natal“, brinca. “Estou em remissão completa da doença, mas sei que tem chão pela frente.”