02/02/2022

De 'Sex and the City' a 'Rebelde', remakes tentam consertar erros sobre LGBTs

Por Folha Press em 02/02/2022 às 10:32

Divulgação/Netflix
Divulgação/Netflix

Num internato no México, uma estudante brasileira dá as boas-vindas aos alunos recém-chegados e logo é corrigida por um deles. “Sejam todes bem-vindes. Estamos na terceira década do século 21”, diz o jovem, deixando a frase na linguagem neutra para contemplar os estudantes não binários –isto é, que não se identificam integralmente com o gênero masculino nem com o feminino.

Num restaurante luxuoso de Nova York, um grupo de amigas de 50 e poucos anos bate papo enquanto toma café da manhã. “Não dá para continuar sendo quem éramos, certo?”, sugere uma delas, uma advogada prestes a começar uma especialização em direitos humanos e engatar um relacionamento com uma personagem não binária.

Cenas como essas poderiam ter saído dos roteiros de seriados como Sex Education e A Vida Sexual das Universitárias, lançados recentemente já mergulhados em questões de gênero e sexualidade. Mas elas fazem parte dos revivals de Rebelde e And Just Like That, que retoma Sex and the City, na esteira de uma explosão de reboots e remakes que precisam enfrentar um problema que eles próprios criaram no passado –a falta de diversidade.

Quando foram lançadas, entre o fim da década de 1990 e o início dos anos 2000, essas produções tinham pouca ou nenhuma preocupação com representatividade. No meio dos anos 1990, existiam só 12 personagens LGBTQIA+ na TV, contra os 360 de hoje, de acordo com a pesquisa Where We Are on TV, da ONG americana Glaad, que monitora anualmente como a comunidade tem sido representada na mídia.

Personagens sem profundidade

Ao retornar, porém, esses seriados encontram um mundo em que pessoas LGBTQIA+ querem ser vistas –ou melhor, bem-vistas– nas telas. O problema é que, para atender à demanda, algumas produções acabam por criar personagens sem profundidade, que, tratados como cotas. Servem só para alavancar a trajetória de outras figuras e encher os bolsos das emissoras com o chamado “pink money”.

É que não basta um revival ter personagens coloridos. Suas histórias precisam ser complexas como as de qualquer outra figura. A avaliação é de Michel Carvalho, roteirista com trabalhos na Globo e na Netflix e antropólogo com formação na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

“A palavra que define um bom personagem LGBTQIA+ é subjetividade”, afirma. “Todo personagem precisa ter um interesse e uma agenda com questões próprias. Mas muitas vezes personagens diversos são planificados, ou seja, a subjetividade deles é regida por apenas um aspecto –o fato de ele ser trans, ou negro, ou gay.”

É o que ocorre no revival de Sex and the City, analisa o roteirista. Ao tentar tirar suas protagonistas de uma bolha glamorosa e heteronormativa para envolver as personagens em narrativas com diversidade, o seriado acabou criticado por apresentar figuras estereotipadas.

Por exemplo, Che Diaz, por exemplo, que a retratam de forma caricata. A personagem se identifica como queer e não binária, tem ascendência mexicana, fuma maconha e faz sexo casual. Sem conflitos próprios, o combo de diversidade que Diaz carrega serve só para desconstruir o trio de mulheres brancas, cisgênero e até então heterossexuais formado pelas personagens principais.

Cinema

“O reboot (de Sex and the City) cria um choque entre as protagonistas e o que é contemporâneo. Até é um conflito interessante, mas serve para aprofundar e construir a subjetividade de quem? Da não binária? Não, das personagens principais. É como se Diaz não tivesse vida própria. Parece muito mais um projeto caça-pauta do que qualquer outra coisa”, diz Carvalho.

Embora seja mais visível no streaming, uma indústria que cresce a todo vapor, o cinema também adota a estratégia. Prova disso é o remake de A Bela e a Fera com atores de carne e osso. Em que LeFou é gay, e somente gay, sem nenhuma outra função narrativa além de trazer à produção representatividade. Ou pelo menos tentar, já que o personagem detonou críticas de que era estereotipado.

Outro reboot de série rechaçado nas redes sociais é Charmed – Nova Geração, que acabou criando personagens caricatos ao tentar solucionar quase que com um “check list” as lacunas de diversidade sexual, racial e de gênero da versão original, de 1998.

Raina Deerwater, pesquisadora do Glaad, concorda que uma representação efetiva precisa ser mais densa. Ela sugere perguntas que devem ser feitas para analisar a qualidade de um personagem LGBTQIA+.

“Temos de questionar se eles têm suas próprias histórias e não estão a serviço de personagens heterossexuais ou cisgênero. Questionar se são tratados com o mesmo respeito que seus colegas, se podem contar a própria história, se têm os mesmos altos e baixos, os mesmos romances, as mesmas diversões que os heterossexuais.”

Representatividade

Há produções que cumprem tais requisitos. É o caso da releitura da Netflix para o desenho She-Ra e as Princesas do Poder, em que a protagonista praticamente salva o mundo tascando um beijo em outra personagem feminina, Felina, e de High School Musical: The Musical: The Series, que retornou com um casal gay depois de ter forçado a heterossexualidade de um coprotagonista na trilogia original de filmes.

Mesmo The L Word, que já centrava em personagens lésbicas em 2004, quando estreou, incorporou no remake Geração Q um personagem transgênero e bissexual com conflitos que vão além de sua identidade de gênero e de sua orientação sexual, assim como One Day at a Time, que voltou ao ar 33 anos depois do encerramento de sua primeira versão, desta vez com a filha da protagonista se assumindo lésbica e namorando uma personagem não binária.

Sendo assim, o reboot de Rebelde, lançado neste ano, teve o mesmo cuidado. Então, a atriz Giovanna Grigio, que interpretou uma personagem bissexual em Malhação e agora vive outra, Emilia, pede que os roteiristas vão além do cumprimento da tabela. “Amo na história da Emilia que sua sexualidade é apenas um detalhe. Ela é uma menina cheia de conflitos, vivendo com intensidade a adolescência, lidando com pressões, encontrando o amor, se questionando enquanto pessoa”, diz.

Longo caminho a percorrer

Contudo, Carvalho, o roteirista, afirma que a complexidade nasce a partir do momento em que quebram certas convenções sobre a comunidade LGBTQIA+ na TV. “Já vimos a narrativa da saída do armário, de se apaixonar pelo melhor amigo, de não se aceitar, de sofrer homofobia. Quando a gente desestrutura essas convenções, complexificamos os personagens”, afirma.

Mas ainda há um longo caminho para que essas histórias cheguem à altura das que, por décadas, contam sobre pessoas heterossexuais. De acordo com a Deerwater, a pesquisadora do Glaad, é preciso adicionar mais diversidade à diversidade.

“A TV precisa contar mais histórias de pessoas queer negras, indígenas, assexuais, intersexuais, não binárias, de corpos diversos, dos que vivem com HIV. Histórias significativas, com personagens tridimensionais e com pessoas LGBTQIA+ não só na frente, mas atrás das câmeras.”

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