Ney Matogrosso diz que ser só uma letra de LGBTQIA+ é como viver numa prisão
Por Gustavo Zeitel/Folhapress em 24/08/2023 às 10:34
Um dia de sol invadia o apartamento de Ney Matogrosso, no Leblon, na zona Sul do Rio de Janeiro. Era uma quinta-feira de inverno, e o bruaá da saída de praia se misturava às buzinas dos automóveis, formando um som indistinto. Naquela tarde, o cantor de 82 anos se acomodou no sofá da sala de estar, vestindo a roupa de todas as ocasiões, jeans e moletom.
“As pessoas olham para mim e pensam ‘olha como ele é pobrinho’, mas sempre gostei de me vestir assim. Não estou preocupado com os outros”, ele diz. “Carioca é estrela. Pouquíssimas pessoas param para falar comigo. É praia, todo mundo é famoso. Adoro isso.”
Ney se prepara para se apresentar no The Town, em São Paulo. Rejeitando a obrigatoriedade de fazer um show de sucessos, o artista leva ao festival a turnê “Bloco na Rua”, oriunda do disco de mesmo nome, lançado há quatro anos.
O repertório inclui as canções “Eu Quero É Botar meu Bloco na Rua”, de Sérgio Sampaio, “Como 2 e 2”, de Caetano Veloso, e “O Beco”, de Os Paralamas do Sucesso. Um dia antes, Ney interpreta, na abertura do The Town, a canção “América do Sul”, de seu primeiro disco solo, “Água do Céu – Pássaro”, de 1975.
Em vida e obra, o artista barra as expectativas do público, no repertório e no discurso político. Ele só firma um compromisso com a sua atitude libertária. É assim que, atado ao presente, o cantor atenta às mudanças comportamentais da sociedade.
Nos anos 1970, Ney integrou o grupo Secos & Molhados e desafiou o moralismo da ditadura, com performances andróginas para canções lisérgicas. Passado tanto tempo, ele não está certo de viver em um tempo mais liberal. O artista afirma já não saber o significado de todas as letras da sigla LGBTQIA+.
“Se você me perguntar o que eu sou nessas letras, não saberei te responder. Já fui tudo. Nos anos 1970, existia uma liberdade na praia, onde as pessoas se permitiam experimentar as coisas, mesmo que não fossem”, ele afirma. “É uma prisão, você ter de ser só uma letra. Sou várias letras. Só não sou todo o alfabeto, porque não sou assexuado.”
É com a mesma postura libertária que Ney lê o noticiário político do país. O artista, que experimentou a viagem do LSD e o barato criativo da maconha, classifica como atrasado o julgamento sobre a liberação do porte de drogas para uso pessoal. “Ninguém vira maconheiro só porque é permitido. Em Nova York, você compra maconha em vans na rua. O Brasil não imita os americanos? Olha aí um exemplo”, diz ele.
De todo modo, Ney diz estar aliviado com a vitória de Lula, do PT, nas eleições do ano passado. Ele deseja, porém, manter sua autonomia crítica. “Lula está mais preparado agora, mas não nos esqueçamos de que o centrão é um câncer”, ele afirma.
Em 2014, Ney criticou o gasto excessivo do governo petista para a realização da Copa do Mundo. “Me pintaram de bolsonarista. Deus me livre, não sou. Quero ter o direito de criticar o que acho errado. Vi no que resultou a Arena Pantanal, em Mato Grosso”, diz.
Em última instância, Ney só faz o que quer. Musicalmente, a turnê “Bloco na Rua” soa como “Atento aos Sinais”, disco lançado em 2013. O projeto motivou o show mais disputado da carreira do artista, que rodou o país durante cinco anos. Do mesmo modo, Ney não pensa em cortar agora o frisson ao redor de sua turnê atual. “Bloco na Rua”, ele conta, não tem data para terminar.
Ney manteve a banda da turnê anterior, com um naipe de metais, que acrescentam gingado às canções. Em cena, Ney parece um réptil, vestindo um collant bronzeado, com uma espécie de crista sobre a cabeça. Sua coreografia, inspirada na própria intuição, sugere os movimentos de um animal arisco, fugidio.
É o mesmo Ney que entoava “Homem de Neanderthal”, em seu primeiro disco. O interesse pelo primitivismo estético permanece, encarnando o personagem meio bicho, meio homem, em formas camaleônicas. Ao longo da carreira, o artista conjugou a persona animalesca ao latino lascivo, delimitado em “Bandido”, álbum lançado um ano depois.
Deste modo, ele também volta às origens. Afinal, o cantor nasceu em Bela Vista, cidade sul-mato-grossense na fronteira com o Paraguai. Em ambos os personagens, a libido pulula como força motriz da criação artística. Ney reforça, então, a consciência de ser um artista latino-americano, integrado a um continente de natureza exuberante.
Junto ao janelão, por onde a luz do sol devassava o apartamento, a macaca-prego Garota macaqueava em sua gaiola, observando o dono sentado no sofá. Ney está adorando a febre dos festivais de música, que tomou conta do mercado nos últimos anos. Mesmo que o repertório não varie tanto, o show no The Town terá uma interação maior com a plateia, incentivada a dançar o tempo todo.
Ney, que não costuma responder aos gritos de gostoso, diz que estará mais respondão. “Não estou ali para discursar, mas para cantar”, ele afirma. É um show que coroa a história do artista com o Rock in Rio.
Em 1985, o intérprete enfrentou a resistência do público metaleiro da primeira edição do festival. A massa enfurecida atirava ovos ao palco, enquanto o artista os devolvia à plateia, num vaivém de claras e gemas.
Afora as participações especiais, ficaram célebres os shows de Ney nas edições de 2017, com o Nação Zumbi no Palco Sunset, e de 2022, em Portugal. Um ritmo frenético para quem desconhece a passagem do tempo. “Está tudo igual. Não sinto nenhuma dificuldade no palco. Não tenho nenhum problema de saúde”, afirma.
Por isso, é o entrevistado que pergunta ao entrevistador para dar fim à conversa. “Você não vai perguntar da minha idade?”, diz Ney, com o moletom aberto, deixando ver o seu peitoral malhado.
Ney Matogrosso no The Town
Quando: Dom. (3), às 17h10