Bebê de 8 meses morre na fila de espera de UTI pediátrica

Por Noelle Neves/#Santaportal em 09/02/2021 às 12:24

DENÚNCIA – Raiza Vieira, de 20 anos, perdeu o grande amor de sua vida no último domingo (7). A filha Lorena, de 8 meses, faleceu enquanto aguardava uma vaga na UTI pediátrica pelo sistema CROSS (Central de Regulação de Oferta de Serviços de Saúde do Estado de São Paulo).

Uma história com muitos culpados, pouca assistência e a dor profunda de uma vida ceifada. Esse é um resumo do que a moradora de São Vicente viveu durante quatro dias.

A bebê nasceu com cardiopatia congênita. Apesar de uma gravidez saudável e dos exames pré-natais não apresentarem qualquer alteração, quando Raiza estava perto de 38 semanas, precisou fazer uma cesária de emergência por sofrimento fetal. Lorena nasceu e foi levada diretamente para UTI. Após um ecocardiograma, a doença foi detectada. Aos 18 dias de vida, fez um cateterismo e ficou internada por 36 dias.

Com apenas quatro meses, fez uma cirurgia de peito aberto. Pouco tempo depois, sofreu três paradas cardiorrespiratórias e precisou passar por uma cirurgia de emergência. Durante quase dois meses, lutou pela vida como a guerreira que se mostrou ser desde que respirou pela primeira vez.

De novembro até o início de fevereiro, a família Vieira Santos viveu dias lindos. “Minha filha era especial, dava para mim tudo que eu precisava. Tão pequena, sem entender nada, mas era meu refúgio. Conviver com ela foi o amor de Deus comigo”, disse.

No entanto, tudo mudou na última quinta-feira (4), quando Lorena foi internada com desconforto respiratório e cianose (coloração azul violácea da pele e das mucosas devido à oxigenação insuficiente no sangue), no Hospital São José. De acordo com Raiza, pela falta de estrutura, foi encaminhada ao Hospital Municipal de São Vicente (antigo CREI).

“Ela tinha plano de saúde. Mas negaram a internação para não quebrar a carência. Meu marido foi atrás para ver a possibilidade de pagar a multa. Mas não teve conversa. Nós falamos que ela estava com situação de saúde frágil, mas responderam que se ela caísse e batesse a cabeça, poderia internar. Se ela tivesse qualquer problema que não envolvesse a patologia, poderia internar, fora isso, sem chances”, contou a mãe ao #Santaportal  .

O prazo de carência acabaria em 23 de fevereiro, 16 dias depois da data do óbito. Pela falta de respaldo, enquanto estava internada no Hospital Municipal de São Vicente, precisou entrar na fila do CROSS para tentar uma vaga em uma UTI Pediátrica bem equipada, no Hospital Dante Pazzanese, em São Paulo.

“Onde ela estava, não tinha estrutura. Eu chorava e pedia para que a intubassem, mas ninguém fez nada. Ela só precisava ficar estável, enquanto aguardava a transferência”, relatou.

 

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FOTO: Arquivo pessoal

Publicação nas redes sociais

As coisas começaram a mudar, quando Raiza expôs o caso nas redes sociais. A publicação emocionante relatava a dor e o sofrimento de uma mãe que implorava por socorro.

“O hospital não tem suporte algum para mantê-la. Não tenho mais aonde ir, já fui em defensoria pública, fórum, delegacia, já conversei com conhecidos e até vereadores, mas tudo sem sucesso”, escreveu no Facebook.

Foram quase quatro mil compartilhamentos. E finalmente, um vereador prestou assistência. Tiago Peretto (PL) soube do caso através de marcações e ligações de conhecidos pedindo que intervisse.

Às 22h de sábado (6), foi para a porta do antigo CREI para tentar atendimento médico especializado. Lá, chamou a Polícia Militar, o Conselho Tutelar, o prefeito e a secretária de Saúde. Mas mesmo com os pedidos, a ajuda não chegou a tempo.

“Fiz o que eu pude. Fiquei ao lado da mãe até o último suspiro. Mas nós enfrentamos uma situação delicada na saúde em São Vicente. Faltam médicos e infraestrutura”, disse o vereador.

Por volta de 3h de domingo, a pequena Lorena faleceu. Não conheceu o mundo e já partiu dele deixando saudades eternas.

“A metade de mim se foi. Era tudo para mim. Meu pontinho de paz, meu combustível diário, minha realeza, a filha que tanto desejei. Ela só precisava de uma vaga na UTI”, lamentou Raiza.

Saúde em São Vicente

“Raiza conhecia a Lorena como se fosse parte do próprio corpo. Durante todo o tempo, pedia para que fosse intubada. Como pai, foi desesperador assistir. Mas lá não tinha um médico para isso. Precisei ligar para o diretor para que a intubassem e isso só aconteceu, porque ‘a coisa ficou feia’”, contou o Peretto.

De acordo com ele, por conta da falta de equipamento médico e de profissionais, precisaram fazer uma “gambiarra” para que a bebê respirasse, quando, na verdade, precisava de um respirador. “A intubação foi realizada tarde demais. Tentaram reanimar, mas não deu. É culpa de um sistema falido. Faltam médicos, equipamentos… Quem deixou a cidade dessa maneira é um assassino. O desvio de verba, a negligência mata. Nossa cidade depende quase que 80% do SUS e não temos atendimento de qualidade”, declarou.

Tiago Peretto se comprometeu em dedicar o mandato para proposituras na área da saúde, principalmente por conta da experiência de acompanhar o sofrimento de uma mãe.

O vereador entrou em contato com o prefeito Kayo Amado para que tomasse ciência da situação. Foi feita uma chamada de vídeo. Apesar da atenção dada, Lorena faleceu pouco tempo depois.

Nas redes sociais, se posicionou: “assim que soubemos, a secretária da Saúde Michelle Santos e eu nos reunimos para acionar todos os contatos possíveis para conseguir a vaga que a pequena precisava. Enquanto isso, entrei em contato com Raiza para tentar levar uma palavra positiva e demonstrar nossa solidariedade e esforço. A situação não era fácil”, escreveu.

“Através do sistema CROSS, a paciente aguardava uma transferência ao Hospital Dante Pazzanese, em São Paulo, uma das maiores referências em cardiopatias. O CROSS é o ponto de contato de todos os hospitais e serviços de saúde que atendem pelo SUS. Ao munícipio cabe ofertar atendimento básico e vagas de baixa e média complexidade. Casos de alta complexidade, como o caso de Lorena, são encaminhados ao Estado”, continuou.

Por fim, Amado disse que o caso mexeu com todos e que não quer que outras famílias passem pelo mesmo. “A saúde é o bem mais precioso de cada cidadão e é em nome disso que devemos trabalhar mais e mais, a cada dia, para que nunca mais nenhuma criança tenha sua vida interrompida por falta de recursos. Que Deus dê muita força aos pais de Lorena”.

Em nota, a Prefeitura de São Vicente, por meio da Secretaria de Saúde (Sesau), lamenta profundamente o falecimento da pequena Lorena e informa que todos os esforços foram empregados na tentativa de salvar a vida da criança.

“Na noite em que ela teve a parada cardiorrespiratória, uma equipe de profissionais estava de plantão no Hospital Municipal, incluindo dois pediatras. Como era muito pequena, o procedimento de intubação precisaria ser realizado por um pediatra especializado em UTI Infantil. Diante da emergência, o médico de plantão intubou a paciente, que resistiu por um tempo antes de entrar em parada”, diz a nota.

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FOTO: Arquivo pessoal

Atendimento à saúde é um direito

No artigo 11, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), consta que é “assegurado atendimento médico à criança e ao adolescente, através do Sistema Único de Saúde, garantindo o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde”.

De acordo com o advogado Mateus Catalani Pirani, o artigo é um pilar constitucional que preza pela saúde coletiva e individual. Dessa maneira, é uma obrigação da União, Estados e Municípios zelar, cada qual em suas esferas, pela saúde dos cidadãos.

No que diz respeito a situação com o plano de saúde, Pirani destaca que o serviço é regulamentado pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), com legislações específicas e portarias. “Sobre essa análise, precisa levar em consideração a existência ou não de doenças pretéritas e conhecidas pelo plano e paciente. A ANS informa que para tratamento de doenças pré-existente, a carência deverá ser de até 24 meses, contudo para casos urgentes, complicações ou risco imediato de vida, esse prazo pode ser reduzido para até 24 horas”.

O advogado ainda informou que, levando em conta o risco de vida e o pagamento do agravo, o ECA se aplica também a operadora. “Sendo o paciente portador do plano, e estando o contrato regularmente pago, sem carência, ou pago o agravo, caberá judicialização para cumprir o direito a saúde e dignidade da pessoa”, concluiu.

Uma mãe que clama por justiça

A mãe da pequena Lorena informou que tomará as medidas judiciais cabíveis. “A única coisa que quero e preciso, ninguém pode me dar: minha filha de volta. Mas estou com raiva, vou atrás dos meus direitos”.

De acordo com ela, há culpados nessa história. “Primeiramente, a Unimed, que negou socorro faltando poucos dias para acabar a carência. Segundo, o Hospital São José, que não quis se responsabilizar e a jogou como peteca para o antigo CREI. Terceiro, o próprio Hospital Municipal por não ter suporte ou profissionais 24 horas, além de falta de equipamento e materiais. Por fim, a Santa Casa de Santos, que negou minha filha. Um contato me informou que lá tinham duas vagas na UTI, mas para conseguir, precisava dar entrada na UPA de Santos. Não deu tempo”.

Em nota, a Unimed Santos informou que no que se refere às questões contratuais da beneficiária Lorena Vieira dos Santos, foi verificado, diante do contato estabelecido com o Hospital, o cumprimento de Carência para internação, bem como pré-existência com Cobertura Parcial Temporária (CPT) até 28/08/2022. “Cumpre esclarecer que os prazos de carências e CPT são estabelecidos em contrato e de acordo com a legislação da ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar, com absoluta observância por parte da Unimed Santos – Cooperativa de Trabalho Médico”

A Santa Casa de Santos, por meio de sua assessoria de comunicação, informou que apesar de contar com toda estrutura necessária para prestar assistência adequada aos casos de bebês com cardiopatias congênitas, o hospital não possui contratualização pelo SUS para oferecer esta retaguarda para a região.

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FOTO: Arquivo pessoal 

Estado responsabiliza o município

A Central de Regulação de Ofertas e Serviços (CROSS) esclareceu que a ficha aberta pelo Hospital Municipal de São Vicente solicitava leito de UTI, sem especificação do módulo específico para cardiopatia. “A origem também relatava quadro grave e infeccioso que inviabilizava a transferência, sendo responsabilidade do serviço de origem estabilizar a paciente. A ficha foi encerrada pelo próprio serviço no dia 7 de fevereiro com a informação sobre o óbito”.

Ainda informou que em outubro de 2020, a criança havia passado por cirurgia cardíaca no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. “Após o procedimento a própria família solicitou a alta da criança para retornarem ao município, onde dariam continuidade ao tratamento por meio de convênio. É importante deixar claro que a Cross não é responsável por ‘liberar’ a vaga, mas sim uma mediadora de pedidos dos serviços de origem. As transferências ocorrem desde que os pacientes tenham condições de transferência, como estabilidade clínica e ausência de infecções”.

Sobre os documentos encaminhados à Central de Regulação de Oferta de Serviços de Saúde – CROSS, a Prefeitura de São Vicente informou que os mesmos foram preenchidos com base em relatórios do Hospital Dante Pazzanese, em São Paulo, onde a criança havia feito a cirurgia. A resposta que a Sesau recebeu do CROSS foi que não havia vagas disponíveis.

“No início da madrugada, surgiu a possibilidade de uma vaga no Dante Pazzanese e a transferência de Lorena estava prevista para a manhã de domingo (7), mas infelizmente a criança não resistiu. Com grande pesar, a Prefeitura de São Vicente se solidariza com a família da pequena Lorena neste momento de profunda dor”. 

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