Peso do voto útil no 1º turno da eleição é controverso entre especialistas
Por Folha Press em 04/10/2022 às 06:00
O voto útil, afinal, alavancou Bolsonaro e impediu uma vitória de Lula já no primeiro turno?
Cientistas políticos ouvidos pela Folha de S.Paulo divergem a respeito da relevância desse fator para o resultado que empurrou a disputa presidencial para o segundo turno, em 30 de outubro.
Lula (PT) recebeu 48,43% dos votos, contra 43,20% de Jair Bolsonaro (PT), placar mais apertado do que previam as principais pesquisas. Os votos recebidos pelo petista ficaram dentro da margem indicada, mas os do presidente foram até 8 pontos percentuais acima do previsto por alguns institutos na véspera.
As apurações ainda nem haviam terminado e já se levantava a hipótese de que a diferença seria explicada pelo voto útil, estratégia em que o eleitor resolve votar não em seu candidato favorito, mas em outro que lhe parece com mais chance de vitória, para impedir que outro nome seja eleito.
Ciro Gomes (PDT) vinha perdendo pontos na semana anterior ao pleito e teve no primeiro turno seu pior resultado em eleição presidencial (3%), o que poderia indicar uma migração de votos para o presidente.
Essa parece ser uma explicação bastante plausível para alguns analistas. Outros, contudo, dizem ser muito difícil estimar esse tipo de transferência de voto.
No primeiro time, Marco Antonio Carvalho Teixeira, professor da FGV, destacou a surpresa de que os votos de Ciro possam ter beneficiado Bolsonaro, e não Lula. Nos últimos dias antes da campanha, petistas encamparam uma ostensiva em prol do voto útil, tentando sobretudo atrair votos de Ciro, para garantir uma vitória em primeiro turno.
As três últimas pesquisas Datafolha indicavam Lula com 50% dos votos válidos, no limiar de uma vitória direta. Adesões de inúmeros artistas, nomes não alinhados ao PT e mesmo de antigos adversários pareciam indicar a concretização desse objetivo.
Eleitor declarado de Ciro em disputas passadas, o cantor Caetano Veloso reforçou a campanha para que eleitores do pedetista abraçassem o petista. Em vídeo divulgado nas redes sociais, disse que o ex-governador do Rio de Janeiro Leonel Brizola, símbolo histórico do PDT de Ciro, afirmava que “artista não dá voto. Mas tira. Então…”. Neste momento, surgia no vídeo o slogan “#tiragomes”.
Diante da pressão, Ciro leu o que chamou de carta à nação brasileira, na qual dizia que não desistiria e que o PT havia deflagrado uma “campanha de intimidação, mentiras e de operações de destruição de imagens” contra ele.
“Mas, ao contrário do que se imaginava, esse voto útil cirista foi para o Bolsonaro, não para Lula”, diz Teixeira. “O Ciro ampliou seus ataques a Lula ao longo da campanha, então o eleitor que resolveu abandoná-lo migrou para o outro lado.”
Ciro foi ministro da Integração Nacional no primeiro mandato de Lula (2003-2006), mas depois rompeu com o partido. Em 2018, contrariado com o PT porque o partido não aceitou formar uma chapa única da esquerda encabeçada por ele, Cirou se recusou a apoiar publicamente Fernando Haddad (PT) contra Bolsonaro.
Duas semanas antes do segundo turno, o presidenciável do PDT viajou para Paris, o que ainda hoje rende inúmeros memes, e não subiu no palanque de Haddad. O fosso entre Ciro e PT estava aberto.
Neste ano, empenhado na estratégia de se posicionar como opositor de Lula, Ciro subiu o tom das críticas, chamando Lula inúmeras vezes de corrupto. Petistas revidaram com mais memes, retratando Ciro como aliado de Bolsonaro por meio de apelidos como “Cironaro” e “Bolsociro”.
“Dessa forma, houve alguma aglutinação do eleitorado conservador em torno de Ciro, e esse grupo acabou impulsionando o presidente nas urnas”, diz o cientista político Vinícius Silva Alves. “Ciro desidratou nas urnas, e tudo indica que seus votos beneficiaram de forma mais acentuada, ou em sua totalidade, Bolsonaro.”
Esse movimento teria favorecido não apenas o presidente, mas também seus aliados em muitos estados. Alves destaca, em São Paulo, os casos do astronauta Marcos Pontes (PL), eleitor senador, e de Tarcísio de Freitas (Republicanos), que vai em primeiro lugar ao segundo turno pelo governo paulista; no Rio, há Cláudio Castro (PL), eleito governador em primeiro turno. Todos tiveram nas urnas mais votos do que indicavam as pesquisas.
Alves levanta a hipótese de que as pesquisas possam ter subrrepresentado grupos eleitores bolsonaristas, mas pondera que houve na primeira etapa da disputa um “clima de segundo turno”, centrado em Lula e Bolsonaro. Isso também explicaria a debandada de votos de Ciro.
“Havia um desejo, dos dois lados, de encerrar a disputa de uma vez. Então o eleitor conservador que não votaria de cara em Bolsonaro já transferiu seu voto de uma vez. E também fez isso em relação aos aliados do presidente. Parece ter sido este o movimento em São Paulo e no Rio.”
Graziella Testa, também professora da FGV, avalia que esse possa ser um dos fatores que levaram ao resultado das urnas, mas que é difícil precisar que peso teve.
“O voto útil, ou estratégico, é característico de sistemas uninominais de turno único. Nesse sentido, penso que o Senado é muito impactado por ele. Já os resultados para o Executivo são mais complexos, não colocaria nas costas do voto útil, não” diz ela.
“Pode ter havido tanto mudança nos últimos dias quanto erro no plano amostral das pesquisas. Nesse caso, a estimativa estava enviesada desde o início. Ou pode ser ainda um somatório das duas coisas.”
O pesquisador Jairo Nicolau concorda. “Tenho dúvida se o voto útil existe de forma ampla, em amplas camadas da sociedade. Não saberia dizer se há comprovação empírica.”
Nicolau também não percebe relação direta entre voto útil e a votação de Bolsonaro. “Se o Lula tivesse subido, e o Ciro, caído, em proporção semelhante, poderíamos até cogitar essa ideia. Mas houve algo contraintuitivo, Bolsonaro é que subiu, enquanto as pesquisas diziam que os votos do Ciro iriam de preferência para Lula.”
Segundo o Datafolha, 46% dos eleitores de Ciro diziam que poderiam mudar de voto às vésperas do primeiro turno. Desse grupo, 36% migrariam para Lula, 26 % iriam para Bolsonaro e 13% mudariam para Tebet.
Dois pontos são importantes para analisar o caso, destaca Nicolau: 1) Se Bolsonaro subiu só no final, subiu com os votos de quem?; 2) E por que subiu só no final?
“Não podemos dizer que tenha havido uma onda bolsonarista de virar voto nos últimos dias, como se ele fosse uma novidade. Ele é o presidente, todos sabem como foi seu governo. Eu creio que pode ter ocorrido um problema de aferição das pesquisas, que não identificaram esse eleitor bolsonarista ao longo da campanha, o que gerou a surpresa com o resultado das urnas.”