23/08/2022

Uso de ferramentas por macacos-pregos ajuda a entender evolução humana

Por Reinaldo José Lopes / Folha Press em 23/08/2022 às 09:13

Reprodução
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O esforço que alguns macacos-pregos do Piauí fazem para quebrar os coquinhos dos quais se alimentam não é brincadeira -os bichos chegam a erguer pedras com o dobro do seu próprio peso para rachar os frutos ao meio.

Um novo estudo mostra que esse trabalho duro compensa: graças ao uso das pedras como ferramentas, os primatas obtêm 50% mais calorias e uma dieta mais equilibrada.

Os dados, obtidos por pesquisadores brasileiros, mostram que a paixão dos macacos-pregos pelo uso de instrumentos tem impacto direto na sua sobrevivência. Mas as implicações se estendem também ao que sabemos sobre a evolução da nossa própria espécie, indicando como o uso de ferramentas simples de pedra pode ter facilitado a vida dos ancestrais remotos da humanidade.

“A ideia de que as ferramentas passaram a ser usadas porque traziam uma contribuição para a dieta, diminuindo o tempo para a aquisição de recursos alimentares, é uma coisa que todo mundo assume como lógico nos modelos sobre a evolução humana, mas que nunca foi testada de verdade”, explica Patrícia Izar, professora do Departamento de Psicologia Experimental da USP e coordenadora do novo estudo.

“Ninguém analisou, de fato, a contribuição calórica e nutricional dessa capacidade de usar ferramentas em primatas não humanos, de um jeito rigoroso e quantitativo, como a gente fez agora”, diz Izar. O trabalho da pesquisadora, junto com colegas do Brasil, da Europa e dos EUA, acaba de sair na revista especializada Current Biology.

Os macacos-pregos ocupam uma posição privilegiada nesse debate. Assim como os chimpanzés, os parentes vivos mais próximos da humanidade, eles são primatas de cérebro avantajado, considerável destreza manual, vida social complexa e capacidade de usar os mais diferentes tipos de instrumentos, de um jeito que parece variar de região para região -ou seja, como se existissem diferentes “culturas” da espécie.

Por outro lado, a linhagem deles e a que daria origem aos chimpanzés e ao Homo sapiens estão separadas há mais de 40 milhões de anos, época em que os ancestrais dos macacos sul-americanos deixaram o continente africano e vieram parar deste lado do Atlântico. Isso significa que o uso de instrumentos entre eles surgiu de forma independente e o torna ainda mais interessante do ponto de vista científico.

A população de macacos-pregos acompanhada no novo estudo vive no município de Gilbués, no sul do Piauí, e se tornou especialista em quebrar frutos duros, principalmente os produzidos por diferentes tipos de palmeiras. Entre eles, destacam-se os coquinhos de piaçava (árvore do gênero Orbignya), avaliados em detalhe na pesquisa. Os bichos também aplicam a técnica para quebrar castanhas de caju.

Em geral, o alimento duro é posicionado em cima de uma pedra grande ou de uma raiz de árvore, que serve como “bigorna”, enquanto os macacos seguram a pedra, ou “martelo”, com ambas as mãos para golpear os frutos.

“Eles ajustam o tamanho da pedra e o esforço para cada tipo de recurso alimentar. Modulam o movimento do corpo, com menor ou maior amplitude, dependendo da dureza da casca ou caso o coquinho já tenha começado a abrir. A percepção das características dos materiais e de como eles precisam ajustar o próprio comportamento é incrível”, conta Izar.

Para avaliar se toda essa especialização vale mesmo a pena para os bichos, era preciso fazer um registro detalhado do gasto de energia e do consumo de alimentos de cada um dos macacos quebradores de coquinhos. Um dos responsáveis pela tarefa foi o biólogo Lucas Peternelli-dos-Santos, que também assina a pesquisa.

“Todos os dias, a gente sorteava um dos indivíduos do grupo, que seria acompanhado o tempo todo”, conta ele. O “Big Brother” dos símios começava por volta das 6h30, quando o bando de macacos deixava as grutas na serra vizinha onde os animais costumavam passar a noite, e seguia até o momento em que começava a escurecer e eles retornavam para seu abrigo.

“Eles estão bem habituados à presença do observador e passam muito tempo no chão e em árvores mais baixas. Como a vegetação não é muito fechada, a visibilidade costuma ser boa”, diz o pesquisador. Ainda bem, porque o trabalho exige um inventário completo dos movimentos dos bichos ao longo do dia, incluindo aí a cansativa atividade de quebrar coquinhos, para estimar seu gasto de energia.

Peternelli-dos-Santos e seus colegas também tinham de contabilizar cada dentada que os animais davam nos frutos de piaçava, nas mangas ou nos insetos de que se alimentavam. Por fim, amostras dos frutos foram analisadas em laboratório para estimar a quantidade de calorias e dos principais nutrientes (carboidratos, proteínas e gorduras) presentes na alimentação dos macacos.

Nos dias em que se dedicavam à quebra dos coquinhos, os primatas obtinham um ganho líquido de calorias de 50% em relação aos demais dias. Isso se dava principalmente por causa do alto teor de gordura do alimento. Ao mesmo tempo, os dias em que eles dispunham dos coquinhos eram menos variáveis no que diz respeito à ingestão de proteínas, outro tipo importante de nutriente. Isso provavelmente significa que os coquinhos quebrados com os instrumentos funcionam como uma base alimentar segura, ajudando a equilibrar a dieta dos bichos.

Um dado ainda mais interessante e sugestivo é o fato de que, quando comparadas a outras populações da espécie, a dos macacos-pregos do estudo podem se dar ao luxo de ficar mais tempo socializando e descansando. Imagina-se que algo assim também acompanhou o uso de ferramentas entre os ancestrais remotos dos seres humanos, estimulando o desenvolvimento de cérebros maiores e comportamentos mais complexos.

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