Raça influi pouco na 'personalidade' individual de cachorros, diz estudo
Por FolhaPress em 29/04/2022 às 12:53
A ideia de que as raças de cães são um elemento importante na definição da “personalidade” dos bichos de estimação acaba de levar um baque considerável, graças à genômica. O maior estudo já feito tentando correlacionar o temperamento dos cachorros com o seu DNA revelou que apenas 9% da variação comportamental entre os cães pode ser atribuída à raça à qual eles pertencem. Ou seja, os bichos são, em primeiro lugar, indivíduos tão únicos quanto seus donos.
Isso vale inclusive para características que costumam estigmatizar certas raças, como uma suposta tendência à agressividade, afirmam as pesquisadoras americanas que coordenaram o estudo. Publicado na edição desta semana da revista especializada Science, o trabalho se baseou em dados sobre comportamento obtidos com os donos de 18 mil cachorros (a maioria dos EUA) e na análise do DNA de um subconjunto desse grupo, com pouco mais de 2.000 animais (tanto “de raça” quanto mestiços e vira-latas).
“Eu nunca tinha tido um cachorro na vida quando entrei na pós-graduação e comecei a estudar a genética por trás de comportamentos compulsivos em cães, com o objetivo de usá-los como modelos para entender problemas equivalentes em seres humanos”, contou Elinor Karlsson, coordenadora do trabalho e pesquisadora da Universidade de Massachusetts, em entrevista coletiva online.
“O problema é que a minha pesquisa começou a emperrar, em parte porque a nossa amostra tinha poucos cães. E aí eu percebi uma coisa engraçada. Toda vez que alguém me perguntava com o que eu trabalhava e eu começava a explicar, a pessoa imediatamente me mostrava uma foto do cachorro dela e começava a me contar tudo sobre o comportamento do animal. Foi aí que ficou óbvio: era desses dados que nós precisávamos.”
O estalo levou à criação do site Darwin’s Ark, ou “Arca de Darwin”, no qual a equipe começou a disponibilizar questionários detalhados sobre o comportamento canino (ainda é possível participar online, e atualmente quem preenche as perguntas já recebe uma análise preliminar sobre seu animal).
As perguntas subdividem o comportamento dos bichos em oito eixos principais (veja infográfico), como sociabilidade, obediência, busca por contato com o dono etc. Foi por meio do Darwin’s Ark que a equipe também recrutou os bichos que foram incluídos na avaliação genômica, a qual empregou basicamente os mesmos métodos usados na busca pela associação entre genes e determinadas doenças em seres humanos.
O trabalho revelou uma associação relativamente pequena entre características comportamentais e raças. Para a especialista da equipe em evolução canina, Kathryn Lord, a explicação é simples. O que acontece é que as raças claramente definidas que conhecemos hoje, seguindo padrões rígidos de aparência física e (supostamente) temperamento, são uma invenção recente, derivando de meados do século 19 para cá.
Antes disso, o processo de seleção das características dos bichos foi muito mais passivo e indireto. “Primeiro, alguns lobos que se tornaram ancestrais dos cães precisaram perder o medo do contato com seres humanos e se tornaram mais dóceis para viver perto das pessoas”, conta ela. “Com o passar dos milênios, alguns animais eram selecionados não por cruzamentos constantes, mas talvez sendo mais bem tratados, recebendo mais comida etc.”
Em resumo, diz Karlsson, os processos mais importantes para a evolução dos cães ainda são, de longe, os mais antigos e simples. Selecionar comportamentos de forma específica é algo que leva tempo, e as gerações que passaram desde a origem das raças modernas não teriam sido suficientes para modificar muito isso.
A conclusão, no entanto, não descarta totalmente a associação entre as raças e certas variáveis de comportamento. Um elemento no qual a raça parece ter maior importância é a obediência, em especial quando o bicho está sendo treinado formalmente. Mais pontualmente, o hábito de uivar (não apenas o de latir) tem associação genética mais clara com certas raças, como huskies siberianos e beagles (a raça do célebre Snoopy).
O estudo não avaliou diretamente a agressividade, mas uma medida mais ampla designada como “limiar agonístico”.
“Ela se refere ao nível de estímulo que faz o animal reagir a algo ameaçador, assustador ou incômodo”, explica Lord. O trabalho revelou que essa medida é pouco herdável, ou seja, a variação entre os cães tem pouco a ver com a genética.