Queda de Liz Truss no Reino Unido prenuncia crise mais aguda na Europa
Por Michele Oliveira/Folha Press em 22/10/2022 às 13:30
Foi uma semana agitada na Europa. No domingo (16), milhares foram às ruas de Paris protestar contra a alta do custo de vida. Na segunda, o ministro britânico das Finanças jogou no lixo o plano econômico da então primeira-ministra, Liz Truss. Na terça, uma greve ganhou força na França, e na Itália o ex-premiê Silvio Berlusconi contava ter se reaproximado de Putin, de quem teria recebido 20 garrafas de vodca.
Na quarta, os índices de inflação confirmaram que os preços seguiram subindo em setembro na União Europeia e no Reino Unido, e o governo francês recorreu a um raro mecanismo para que a lei orçamentária avançasse sem os votos do Parlamento. Na quinta, Truss renunciou após 44 dias. Na sexta, Giorgia Meloni foi oficialmente encarregada de formar o governo italiano, o primeiro de ultradireita desde o fascismo.
Tem mais: na Alemanha, à beira da recessão, o premiê Olaf Scholz sofre pressão devido às respostas para a crise energética. Internamente, enfrenta a resistência de aliados por prolongar a operação de usinas nucleares. Fora, a cara feia de líderes diante de sua relutância com a adoção de um teto no preço do gás.
São turbulências de nuances diferentes, mas que sinalizam o que analistas preveem há meses. O outono no Hemisfério Norte indica uma onda de insatisfações crescentes. “Um inverno de descontentamento global está no horizonte. A crise do custo de vida está em fúria, a confiança, desmoronando, e as desigualdades, explodindo”, disse recentemente o secretário-geral da ONU, António Guterres.
O “inverno de descontentamento”, expressão shakespeariana, remete ao período no fim do anos 1970 no Reino Unido, marcado por greves por aumento de salário. Mais de 40 anos depois, o cenário se desenha na França, que há semanas vive uma escalada de protestos de trabalhadores.
Diante da inflação de 6,2% em setembro –registre-se, abaixo da média da zona do euro (9,9%)–, o poder de compra corroído virou o argumento para paralisações. O movimento, iniciado em refinarias e centrais nucleares, ganhou o apoio de ferroviários, operadores sanitários e funcionários da educação.
Assim, mais de 100 mil pessoas participaram de atos públicos, os maiores do segundo mandato do presidente Emmanuel Macron –hoje submerso na crise interna, em comparação ao início do ano, quando ensaiou assumir um papel de timoneiro diplomático do continente.
O mal-estar vem das ruas e do Parlamento, no qual o governo não tem maioria absoluta. Depois de tentativas frustradas, foi preciso acionar uma ferramenta constitucional (o artigo 49.3) que permitiu ao Executivo aprovar a primeira parte do orçamento para 2023 sem os votos dos deputados.
A oposição chamou a medida de antidemocrática e prepara um voto de desconfiança –o que não impediu o governo de recorrer de novo ao mecanismo no dia seguinte, para o orçamento da seguridade social.
Greves estão na agenda dos britânicos desde antes da queda de Truss, desfecho que intensifica a crise econômica e política que se arrasta há meses no país. Diante de contas cada vez mais caras, com alta de mais de 14% no preço dos alimentos, categorias como enfermeiros e portuários planejam manifestações.
Ao ver afundar seu plano econômico, baseado em corte de impostos e ampliação de empréstimos, Truss se despediu após desvalorizar a libra e ver sua popularidade desabar. A oposição pressiona por novas eleições, mas os conservadores prometem um sucessor –o terceiro premiê neste ano– até o dia 28.
Para Sylvain Kahn, professor de assuntos europeus na Sciences Po, em Paris, ainda não é possível falar em cenário de instabilidade na Europa, apesar das questões energéticas e inflacionárias, frutos da Guerra da Ucrânia. Já a crise do Reino Unido é mais profunda do que a de seus antigos companheiros de UE.
“Na UE, existe muita regulação institucional e política, e cada líder sabe que deve trabalhar também em nome dos demais países. Se o Reino Unido ainda estivesse no bloco, Truss talvez nem tivesse anunciado seu plano”, diz ele à reportagem. “A realidade é que os países da UE são menos fracos porque estão juntos.”
Quaisquer sejam as conjunturas, os desafios, porém, parecem ser os mesmos em Londres, Berlim, Roma, Paris… A efêmera passagem de Truss pelo governo, então, serve de alerta para Meloni, que assumiu o posto de primeira-ministra neste sábado (22). A prioridade declarada do novo ministro da Economia, Giancarlo Giorgetti, é intervir nos preços da energia para frear a inflação (9,4%) e conter danos a famílias e empresas, deixando em segundo plano promessas eleitorais como a alíquota única de impostos.
A intenção soa bem, mas será preciso observar a capacidade da coligação, que inclui as siglas de Matteo Salvini e Berlusconi, de superar divergências. Nesta semana, a Itália contribuiu para a agitação na Europa com o áudio vazado de Berlusconi, em que ele culpava a Ucrânia pela guerra e dizia ter se reaproximado de Putin. “Ele me disse que sou o primeiro de seus cinco verdadeiros amigos”, falou a parlamentares.
Meloni fez uma dura declaração, reforçando a linha europeísta e atlantista do mandato. “Quem não estiver de acordo não poderá fazer parte do governo, sob o custo de não ter governo.”
Maior economia europeia, a Alemanha tem abrandado a inquietação social com o pacote de EUR 200 bilhões que alivia os impactos da crise energética. A medida despertou críticas de vizinhos, que viram egoísmo na busca por um remédio individual. Macron ressaltou que o isolamento de Berlim “não é bom para a Europa”.
Outro ponto incômodo tem sido a resistência de Berlim em apoiar o teto no preço do gás. Pressionado, Scholz deu sinais de ter cedido à questão depois de uma reunião de líderes do Conselho Europeu, nesta semana. Antes, porém, já havia cancelado um encontro bilateral com Macron, oficialmente por motivos logísticos, mas, nos bastidores, devido a divisões em temas de energia e defesa.
Segundo Kahn, da Sciences Po, mesmo na crise energética, um campo difícil de manter unidade entre os 27 países, de realidades tão diversas, o bloco tem conseguido seguir em frente, ainda que pouco a pouco.
“A UE é mais forte do que aparenta. Durante a pandemia e no plano de recuperação, essa dinâmica foi aprimorada. Não vejo sinais de que ela esteja enfraquecida.” O inverno, porém, ainda nem começou.
O mal-estar com com os líderes das maiores economias da Europa
- Olaf Scholz (Alemanha)
- Aprovação popular: 25%
- Inflação em set.22: 10,9%
- O país é o que mais depende do gás russo na Europa
- O premiê sofre pressão interna e externa para lidar com a crise energética e ouviu críticas pelo isolamento
- Liz Truss (Reino Unido)
- Aprovação popular: 10%
- Inflação em set.22: 10,1%
- Viu seu plano econômico fracassar e ser revertido
- Sob pressão de todos os lados, renunciou após 44 dias de governo
- Emmanuel Macron (França)
- Aprovação popular: 37%
- Inflação em set.22: 6,2%
- Sem apoio na Assembleia, precisou usar por duas vezes um dispositivo que permite aprovar leis sem aval da maioria
Internamente, vê crescer a insatisfação de trabalhadores; país teve greve geral
- Giorgia Meloni (Itália)
- Aprovação popular: 40% (expectativa)
- Inflação em set.22: 9,4%
- Precisará lidar com a crise econômica enquanto enfrenta resistência na própria coalizão
Fontes: YouGov, Ifop, Insa, Ipsos, Statista