Eterna aposta do Nobel, Cartarescu cria alter ego que desiste dos livros
Por Folha Press em 24/11/2024 às 15:24
Mircea Cartarescu é a eterna aposta da Romênia para o Nobel de Literatura. O autor se tornou conhecido em 1977, ao ler seu poema “A Queda”, ainda inédito no Brasil, em um sarau literário.
Nas décadas de 1970 e 1980, estabeleceu sua reputação como poeta e, desde a queda do Muro de Berlim e do fim da censura, como prosador em contos, romances, crônicas. No Brasil, a Mundaréu lançou seu “Nostalgia” em 2018 e, agora, o enciclopédico romance “Solenoide”.
Nesse livro, Cartarescu cria um espelho distorcido de si mesmo ao imaginar uma realidade alternativa em que seu poema “A Queda” foi terrivelmente mal recebido. É na distorção deste momento crucial da vida do próprio Cartarescu que nasce o narrador sem nome de “Solenoide”.
Ao invés de ovacionado, ele é rechaçado por seus pares e desiste para sempre da carreira literária, tornando-se professor do ensino médio. A partir daí, esse alter ego fracassado se compara constantemente ao que sabemos ser a realidade de Cartarescu e a despreza.
“Se meu poema… tivesse sido bem recebido… hoje talvez eu tivesse dez livros com meu nome na capa… [mas] teria esquecido que um livro, para significar algo, deve indicar uma direção.” Para ele, a literatura é “um museu de portas ilusórias”. “Não estou enganando ninguém ao pintar portas que jamais se abrirão”, diz a si mesmo, em palavras de consolo.
Nunca houve na literatura um livro tão antiliterário e que, justamente por isso, ilustra tão bem as potencialidades ainda inexploradas do romance como gênero literário.
“Cabe a um livro exigir uma resposta. […] Li milhares de livros, mas não encontrei um que fosse paisagem e não um mapa. Cada página é achatada, diferente da vida em si. […] Nenhum livro tem sentido se não for um Evangelho. O condenado à morte poderia ter as paredes cobertas de prateleiras repletas de livros… mas ele precisa é de um plano de fuga.”
Todos os grandes romances são cósmicos –eles partem da especificidade das situações cotidianas e abraçam a totalidade da existência– mas cada um vem de um cotidiano diferente.
A primeira coisa que surpreende em “Solenoide” é sua fisicalidade. Ele começa com a frase “peguei piolho de novo” e, em poucas linhas, já acompanhamos esse “Augusto dos Anjos romeno” futucar seu próprio corpo de todas as maneiras possíveis, tirando com a tesoura um inchaço duro do dedão do pé e puxando fios de barbante do próprio umbigo.
Ao lado dos horrores de nossa corporalidade tão individual e úmida, o romance também se serve de um vocabulário lovecraftiano para descrever os horrores cósmicos da morte e da dissolução, com uma importante diferença.
Em Lovecraft, os horrores são distantes e incompreensíveis e, em “Solenoide”, são concretos e próximos –a podridão dentro de nós mesmos, nossa dor, nossa morte.
Em uma entrevista recente, Cartarescu descreve “Solenoide” como metafísico e ético, “um livro vertical, dirigido aos céus”, que ousa articular respostas para algumas das mais antigas e importantes questões da humanidade: de onde vem o mal? Por que nascemos condenados à morte?
E, no fim, em uma época em que o cinismo se transformou na nova ortodoxia, Cartarescu tem a ousadia maior de terminar o romance em uma nota positiva e esperançosa que remete à figura do Bodisatva budista –que a redenção deve ser para todos, que não temos a permissão de nos salvar até que todas as pessoas estejam salvas.
A dificuldade de resenhar “Solenoide” é que simplesmente listar episódios isolados do seu enredo –muitas vezes grotescos como um barbante de umbigo– não transmite o sentido de maravilha desse livro cuja própria leitura parece uma experiência religiosa.
Os episódios precisam de contexto dentro das 800 páginas desse romance para serem significativos. Afinal, o leitor só pode contar com a palavra do resenhista de que, sim, a viagem vale a pena.
Seria desonesto prometer que, no fim, tudo faz sentido, mas não seria exagero afirmar que é uma leitura revolucionária, impactante, transformadora.
Solenoide
Preço: R$ 146 (784 págs.)
Autoria: Mircea Cartarescu
Editora: Mundaréu
Tradução: Fernando Klabin
Avaliação: Ótimo