'O Segundo Ato' propõe jogo de duplicação em filme feito por IA
Por Folha Press em 06/11/2024 às 14:29
Em “O Segundo Ato”, duas figuras se superpõem: a do ator e a de seu personagem. O que leva a pensar, de imediato, que o filme de Quentin Dupieux é dedicado a seus atores, ou ao ofício de ator que eles aqui representam.
A ação se abre com um uma longa cena, um longo travelling em que conversam David (Louis Garrel) e Willy (Raphaël Quenard), enquanto vão ao encontro com uma moça que está interessadíssima em David, mas não é correspondida. David pede ao amigo que jogue um charme sobre a moça e a seduza. Willy teme entrar numa roubada. O que teria de errado essa moça para David fazer tal pedido? Será feia? Não. Será transgênero? Terá problema neurológico ou coisa assim? Willy começa aí a derramar um ideário bem machista, que parece repugnar a David.
Mas será que Willy é Willy? Ou será o personagem do filme que estão rodando e eles ensaiam seus papéis? É nesse desdobramento de ator em personagem e vice-versa que “Segundo Ato” evolui.
Na cena seguinte estão Florence (Léa Seydoux) e seu pai Guillaume (Vincent Lindon). Florence está ansiosa porque pretende apresentar a Guillaume aquele que julga ser o homem de sua vida, David, justamente. O mesmo ritual se repete: depois de um tempo sabemos que eles também são atores que estão fazendo um filme, o mesmo filme.
A arte de Dupieux consiste em fazer dessa duplicação um jogo interessante, que de certa forma nos coloca diante do que é ser ator, isto é, de todo o tempo assumir uma segunda personalidade como se fosse a sua. Parece óbvio, mas fazer isso com humor não é tão simples assim: é como se estivesse torcendo e depois destorcendo os seus personagens, que se desdobram e interagem nos dois níveis, no do ator e no do personagem.
Mas quem é quem? Depois de algum tempo as duas personas se confundem -tanto mais que o filme é “escrito e dirigido por IA“, ou seja, inteligência artificial, dispensando a presença de técnicos humanos nas redondezas. Logo, passada a tensão inicial sobre quem é quem, o espectador pode se entregar a esse jogo sem constrangimento e, afinal, rir, porque se trata de uma comédia.
No entanto, e David vai expor o que talvez seja a ideia central do filme, trata-se de discutir o real e o fictício. Ou, mais especificamente, essa qualidade de um invadir o outro: de nossas fantasias serem tão reais quanto as coisas concretas. O teatro e o cinema, sobretudo o cinema, são lugares onde se entrelaçam essas instâncias, onde se espelham, e o humor suave que o filme transmite dá conta dessa qualidade do humano com desenvoltura e sem se dar maior importância: talvez sejamos seres suspensos entre ficção e realidade.
Nessa equação sobressai, evidentemente, o ator; evidência dessa duplicidade. E o mínimo a dizer é que, do começo ao fim, o quarteto central de atores responde muito bem ao que lhes é pedido. No mais, diálogos que colocam em questão misoginia, racismo, machismo, etc, mostram-se tão mais pertinentes quanto evitam tratar essas palavras -ou o que elas subentendem- com a gravidade excessiva que arruína com frequência causas justas.
Se filosofa sem recorrer ao filosofês, “Segundo Ato” transmite uma vitalidade sem afetação, algo que lembra os tempos da nouvelle vague -aquele descompromisso com “a arte” que fez dela um movimento artístico tão central. A vitalidade que se sente em Dupieux, de que faz parte o prazer com que tudo parece ser feito, inclusive a atuação dos atores, pois é ao ator que o filme entroniza como centro do filme (e talvez do cinema).
Curioso notar que o filme de Dupieux está na mesma chave do argentino “O Que Queríamos Ser”, de Alejandro Agresti. Este último foi o filme que mais me impressionou na 48ª. Mostra Internacional de São Paulo. Desenvolve uma ideia similar, mas envereda mais para o fantástico (à moda argentina, aliás), na medida em que os dois personagens que ali se encontram desenvolvem um jogo curioso de só se apresentarem ao outro como um ser inventado. E tudo parte da discussão sobre se o ator se despersonaliza à custa de desenvolver dentro de si tantas personalidades fictícias.
São assuntos bem atuais: o que somos e o que representamos, o que queremos ser e o que somos. Parece que no século 21 também as identidades se repartem, se estilhaçam e pedem para ser novamente expostas. Se não é um problema filosófico e certamente um belo problema artístico.
O SEGUNDO ATO
– Avaliação Muito bom
– Quando Festival Varilux de Cinema Francês 2024 – Estreia nos cinemas dia 7/11
– Classificação Livre
– Elenco Louis Garrel, Léa Seydoux, Vincent Lindon
– Produção França, 2024
– Direção Quentin Dupieux