Matuê pode não ter hits em '333', mas assume riscos que o levam além
Por Amanda Cavalcanti/Folhapress em 11/09/2024 às 10:17
Quando começou a carreira, no meio dos anos 2010, Matuê se encontrava numa posição contraditória: ainda que desfrutasse de um grande sucesso comercial, o artista era visto um tanto como uma chacota pelos fãs mais ferrenhos do hip-hop e artistas underground. Em 2019, ele virou um verso debochado do rapper Yung Buda: “Se nós se matar/Quem mata o Matuê?”
Isso mudou com o lançamento de seu primeiro álbum, “Máquina do Tempo”, há cerca de quatro anos. Em sete faixas muito bem amarradas, Matuê mostrou uma versatilidade e atenção a detalhes impressionantes, que renderam a ele comparações a artistas como Travis Scott, um entusiasta do rap psicodélico. Matuê agora lança seu segundo álbum de estúdio, “333”, e volta para provar que o espaço que conquistou no rap nacional é seu por direito.
Numa performance que ecoou a do ilusionista britânico David Blaine, que passou 44 dias preso numa caixa de vidro que sobrevoava Londres nos anos 2000, Matuê passou três horas e 33 minutos imóvel em cima de uma plataforma montada no centro de São Paulo.
Assim que o cronômetro acoplado na plataforma atingiu 3:33:33, quando Matuê já tinha reunido centenas de fãs para assistir à sua performance sem anúncio prévio, o álbum ficou disponível em todas as plataformas digitais.
Desta vez, em vez dos breve 19 minutos de “Máquina do Tempo”, “333” entrega 42 minutos de novas faixas, uma duração de um álbum de verdade. A impressão é que o artista quis transportar o ouvinte para uma jornada paralela à história de sua vida e carreira, não apenas pelos temas líricos, mas também por meio das escolhas de produção.
Um tema comum na música pop, às vezes até exaustivo, é o do artista torturado por sua própria fama -inclusive, alguns discos essenciais do hip-hop recente tratam justamente disso, como “To Pimp a Butterfly”, de Kendrick Lamar.
Para Matuê, o sucesso que ele narra nas primeiras faixas em “333” é o que o isola do mundo e o joga contra si mesmo. Sobre suas já conhecidas batidas de trap e parcerias com seus pares Veigh e Brandão85, o rapper parece avisar a si para “não vacilar, maninho” e não cair em “armadilhas do ego”. É como se a jornada do herói começasse pela provação.
O próximo passo, então, é a volta para casa. O artista cresceu em Fortaleza, e a cidade é tema constante de suas faixas -em “Máquina do Tempo” e “É Sal”, ele faz uma homenagem à terra natal. Já em “333”, a metrópole aparece principalmente nas gírias usadas pelo rapper e ganha a sua própria faixa em “4Tal”, parceria com Teto com toques do reggae que influencia Matuê desde o início de sua carreira.
Daí para frente, “333” sai do lugar-comum em termos de estética. A mudança drástica de sonoridade começa por “O Som”, faixa que poderia ter saído de um disco do grupo psicodélico Tame Impala. É uma viagem espiritual de cinco minutos. A letra da faixa é, de maneira metralinguística, uma procura pelo som.
Não é de hoje que as influências de Matuê vão muito além do hip-hop, para sons mais alternativos. Há alguns meses, ele postou uma foto de um vinil de “…I Care Because I Do”, de um dos artistas mais influentes da música eletrônica, Aphex Twin. Em um single promocional para sua marca Lugar Distante em 2021, o rapper rimou por cima de um sample do Foxygen, uma banda indie americana.
O resultado desse ecletismo se torna evidente na segunda metade de “333”, em que Matuê puxa influências que vão de Daft Punk a Erykah Badu e ao soul -e acabam na faixa em inglês “Like This!”, que parece ter saído da onda “indie sleaze”, o indie rock dos anos 2000, que domina a internet e influencia novos artistas como o produtor americano The Dare.
O risco que ele corre na sonoridade é acompanhado por ideias também mais sofisticadas de composição. Em “V de Vilão”, Matuê narra uma história de assassinato. Em “O Som”, ele deixa o formato tradicional de verso, refrão e verso para compor uma estrutura quase amorfa.
São riscos que se pagam: “333” pode não ser uma sequência de hits como “Máquina do Tempo”, mas é uma exibição com mais nuances da trajetória artística e pessoal de Matuê.