Com teoria de Batman e Robin gay, livro catalisou censura nas HQs há 70 anos
Por Folha Press em 21/01/2025 às 10:55
“Um dos maiores crimes de censura na história.” “É o ‘Mein Kampf’ das histórias em quadrinhos.” “Não adianta só um alerta dizendo que deve ser considerado o contexto histórico de forma genérica.” Esses foram alguns dos comentários que povoaram o X nas últimas semanas a respeito de “A Sedução do Inocente”, livro do psiquiatra Fredric Wertham, que ganha uma edição brasileira 70 anos após a sua publicação, desta pedra angular da autocensura nas HQs (histórias em quadrinho) nos Estados Unidos.
Wertham foi uma figura complexa. Ligado a pautas de esquerda, o psiquiatra decidiu estudar o que levava jovens dos Estados Unidos à delinquência. Conduziu uma pesquisa em Nova York e analisou que a exposição de crianças à violência por meio das HQs seria uma das supostas causas do problema.
A partir de entrevistas com jovens homossexuais, por exemplo, chegou à conclusão de que as histórias da dupla Batman -um justiceiro milionário- e Robin -seu fiel e jovial ajudante- teriam um subtexto gay. Já o indestrutível Superman seria o espécime perfeito da “super-raça” nazista.
As ideias do psiquiatra inspiraram audiências no Senado americano, que ouviu depoimentos de Wertham e de chefes das principais editoras, como DC Comics, Timely Comics -futura Marvel- e EC Comics, especializada em suspense e ficção científica.
À época, o livro, que nunca foi publicado fora dos Estados Unidos, levou à criação do Comics Code Authority, selo de autorregulação da Associação Americana das Revistas em Quadrinhos, que vetava palavras, temáticas e até determinadas cores nas revistas. Foram vetadas, por exemplo, narrativas de terror, com crime sangrentos, luxúria, sadismo e toda sorte de ilustrações “sensacionalistas e desagradáveis”.
“Foi um movimento para destruir a EC Comics, que naquela época fazia até mais sucesso que as histórias de super-heróis”, afirma Gonçalo Junior, jornalista e autor de “A Guerra dos Gibis”, que narra o processo de censura das HQs no Brasil, e responsável por trazer o livro de Wertham pela editora Noir.
Alexandre Linck, doutor em literatura e pesquisador de HQs, ressalva que a ascensão da televisão também contribuiu para a queda da venda das HQs. “A EC realmente pegava pesado. Mas acho muito mais que eles foram usados como bode expiatório do que de fato responsáveis pela queda nas vendas de super-heróis.”
“Wertam não era um defensor da censura. Ele defendia algo que usamos hoje, a classificação indicativa ou mesmo algum tipo de restrição de acesso a conteúdos adultos por crianças”, afirma Linck.
Alvo de críticas, Gonçalo rechaça a acusação de que o livro não deveria ser publicado. “É como você querer esconder a história. Você só evita que a história se repita estudando-a”, afirma.
A ideia é apresentar ao público consumidor de HQs e pesquisadores o que Wertham pregava e rebater suas ideias. Por isso, o financiamento coletivo de “A Sedução do Inocente” acompanha um segundo volume, “A Reflexão do Inocente”, para explicar a pesquisa do psiquiatra e como era o mercado editorial americano na época. Os livros não são vendidos separadamente.
“A Sedução do Inocente” não iniciou o movimento contra a nona arte, que já era perseguida desde o fim dos anos 1940, mas levou a censura na indústria ao seu ponto máximo. “Imediatamente eliminaram mais de uma centena de editoras de terror e de quadrinhos policiais [das bancas]. As tiragens despencaram, os distribuidores só comercializavam os quadrinhos que tinham selo do código de ética”, diz Gonçalo.
Linck, porém, tem críticas à abordagem da atual edição. “O processo de censura já estava em curso antes da publicação do livro. O problema do mercado editorial hoje é o medo de soar acadêmico e fazer publicações voltadas [apenas] para esse público”, afirma. “Você visa agradar tanto o colecionador como o acadêmico e acaba produzindo um Frankenstein que não cumpre nenhuma das duas funções direito.”
Além de Gonçalo, a obra traz textos de Jotapê Martins, psiquiatra e tradutor de HQs desde 1979; dos também psiquiatras Durval Mazzei Nogueira Filho e Francisco Baptista Assumpção Junior; e de Nobu Chinen, membro da Comissão Organizadora do troféu HQ Mix.
Muitos pesquisadores já se debruçaram sobre os escritos de Wertham para rebatê-los. Carol Tilley, professora da Universidade de Illinois, foi uma dessas pessoas. Em 2013, ela atestou que o psiquiatra manipulou os dados usados para a produção da obra.
Wertham não chegou a ver o livro contestado. Ele morreu em 1981, com o código de autocensura ainda em vigor no mercado editorial dos Estados Unidos, que só seria abandonado de vez, por desuso, nos anos 2010.
O livro também chega ao Brasil em um momento delicado para o mercado, com tentativas de censura a quadrinhos no último ano.
Foi o caso da suspensão de “O Menino Marrom”, de Ziraldo, em uma escola em Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais. Chamado de satânico por pais preocupados com a obra presente no calendário acadêmico dos filhos, a publicação voltou para as escolas do Município por decisão da Justiça.
Já em Belo Horizonte, a 12ª edição do Festival Internacional de Quadrinhos foi palco de ataques. Durante o segundo turno das eleições, disputado entre Bruno Engler (PL) e o prefeito Fuad Noman (PSD), que se reelegeu, a propaganda eleitoral do candidato do PL colocou o deputado federal Nikolas Ferreira (PL) para atacar o evento e obras como “Kit Gay”, “Diário de Uma Mãeconheira”, e “Satã, Amigo de Crianças Boas”.
O FIQ, evento que acontece desde 1999, se defendeu das acusações publicando carta na qual rebatia a ideia de que a produção de quadrinhos era voltada só ao público infantil.
Gonçalo acredita que o atual momento dos quadrinhos no Brasil não terá influência sobre a publicação de “A Sedução do Inocente”. “Há uma discussão idiota de que a direita vai usar o livro. A direita usa o discurso que quiser sem precisar de nada”, diz.
“Note que, sempre, em nome das crianças, muita gente fala bobagem, seja em 1950 ou agora”, diz Linck. “Mas o modus operandi é outro. Talvez ‘A Sedução do Inocente’ não caia no radar.”