Angelina Jolie interpreta Maria Callas ao repensar a carreira e seu esgotamento
Por Bruno Ghetti/ Folha Press em 29/08/2024 às 17:24
Angelina Jolie foi anunciada como a intérprete de Maria Callas no cinema, muios acharam a escolha um erro. Afinal, a não ser pelo branco dos olhos, a atriz e a soprano não têm nenhuma outra semelhança física. Seria preciso um trabalho meticuloso de maquiagem -ou de inteligência artificial- para fazer uma se parecer com a outra.
Além disso, Callas sempre foi uma mulher de caras e bocas expressivas e imponentes, algo que em nada combina com o estilo mais volátil, por vezes frágil e muito ancorado nos traços de beleza mais imediata de Jolie.
Ambas, no entanto, se alinham à categoria de divas trágicas, e o cineasta chileno Pablo Larraín recorre sabiamente a essa característica comum para estabelecer uma conexão entre as duas em “Maria”, filme recebido com aplausos nesta quinta-feira, ao ser exibido no Festival de Veneza.
O longa não cai na armadilha de buscar uma atriz mimetizada em Maria Callas. Em cena, vemos Angelina Jolie tal como ela é, apenas com cabelos, óculos e alguma expressão corporal que buscam remeter à figura da estrela da ópera, jamais em uma imitação pura e simples.
“Tenho em comum com ela coisas que não vou dizer, mas que vocês sabem ou supõem”, disse Jolie, em conversa com jornalistas em Veneza, levantando suspeitas de uma referência ao conturbado relacionamento com Brad Pitt, que teria semelhanças com o affair que Callas teve com o milionário grego Aristóteles Onássis, em que ele a traía sem disfarçar. “Mas compartilho com Callas a vulnerabilidade dela, mais do que qualquer outra coisa”, completou a atriz.
O que Jolie faz em cena é apresentar uma sugestão do tipo de mulher que Callas era no fim da vida: cansada, deprimida e sem forças para continuar a viver. É uma personagem obviamente dramática -ou melhor, trágica, na tradição grega da inevitabilidade do destino, com a decadência e a morte, após tempos de grande brilho.
Jolie apresenta uma performance surpreendentemente contida, ainda que, a seu modo, grandiloquente. A crise conjugal, o excesso de filhos para criar, problemas de saúde e uma preocupação talvez excessiva com a militância política parecem ter minado a energia que Jolie tinha no começo da carreira; com os anos, parecia cada vez mais exausta em cena.
Pois agora ela usa sua própria perda de vitalidade e a empresta à Callas imaginada por Larraín. Acerta em cheio. Pode significar para ela a sua volta por cima depois de anos sem um papel bom no cinema. Já é ventilada como presença quase certa entre as indicadas para o Oscar de melhor atriz do ano que vem.
“Honestamente, meu medo é apenas desapontar os fãs de Callas e de ópera”, disse Jolie, desconversando quando questionada sobre suas expectativas para receber mais uma estatueta dourada -ela já ganhou uma de coadjuvante em 2000, por “Garota Interrompida”.
O filme começa no dia da morte de Callas, em 16 de setembro de 1977, quando ela tinha 53 anos. Não possuía mais a qualidade vocal que a havia consagrado e vivia praticamente reclusa, dividindo sua rotina basicamente com dois cachorros, um mordomo e uma faxineira, além de um médico, sempre preocupado com a deterioração de sua saúde causada pelo excesso de remédios.
“Maria” logo recua para uma semana antes do dia da morte, em que uma Maria Callas neurologicamente exaurida abusa de tranquilizantes para suportar o dia. Acaba tendo o que parecem ser delírios, que envolvem a rememoração de seus tempos áureos do passado e da infância traumatizante na Grécia, mas também um arriscado plano de retornar ao mundo do canto, tentando desesperadamente extrair o resto de afinação que suas envelhecidas cordas vocais ainda conseguem emitir.
Em idas e vindas temporais, conhecemos um pouco de sua história. Na juventude grega, vemos que sua mãe lhe obrigava a cantar para soldados alemães, durante a Segunda Guerra -e também a lhes prestar serviços sexuais. Depois a vemos, ainda com a silhueta rechonchuda do começo da carreira, em suas primeiras apresentações de destaque, em Veneza. Em breve ela se tornaria a diva do canto lírico.
O filme não se pretende factual; assim como “Jackie”, sobre Jacqueline Kennedy, de 2016, e “Spencer”, sobre Lady Di, de 2021, é uma fantasia que se presta a imaginar o que pode ter sido a vida de Callas, ainda que imaginado. Os três filmes, aliás, compõem uma trilogia de Larraín sobre mulheres muito famosas e consideradas problemáticas.
É natural que, em um filme sobre a mais celebrada das cantoras líricas, o diretor optasse por um formato que remetesse a uma ópera. Assim, “Maria” é dividido em atos, e a trajetória da protagonista é apresentada com pathos e elementos cênicos carregados.
Mas o filme é operístico só até certo ponto. Pende muito mais para o intimismo do que para o excesso e a pompa desmedida. Quando muito, seria uma ópera de câmara -muito elegante, por sinal.
Destacam-se ainda as excelentes performances de Pierfrancesco Favino e Alba Rohrwacher, como seis serviçais, que são sua família no fim da vida. São papéis pequenos, mas luminosos.