'Rolíude nodestina' critica artificialismo dos estúdios de 'O Auto da Compadecida 2'
Por Folha Press em 04/02/2025 às 10:43

Quando “O Auto da Compadecida” foi filmado, em 1998, Ana Beatriz Aprigio nem tinha nascido. O pai dela, Francisco, era padeiro em Cabaceiras, cidade do semiárido paraibano que abrigou as locações do longa de Guel Arraes, lançado em 2000 e visto por mais de 2 milhões de pessoas.
Apelidada de “Roliúde” nordestina por ter servido de locação para dezenas de filmes desde o início do século passado, Cabaceiras ganhou fama nacional com o sucesso da versão cinematográfica da peça de Ariano Suassuna. A euforia causada pela estadia da equipe do “Auto 1” na cidade é lembrada até hoje.
“As filmagens pararam Cabaceiras. O elenco ia na padaria tomar café, comeram do meu pão. Aquilo marcou a cidade para sempre”, recorda Francisco.
O então padeiro depois migrou para o Rio, onde hoje trabalha como porteiro. Ana Beatriz nasceu na cidade, e hoje, aos 20 anos, é estudante de jornalismo e cinema na PUC.
Na segunda quinzena de janeiro, a família Aprigio visitava Cabaceiras -os dois e mais Marilyn, mulher dele e mãe dela, batizada em homenagem à atriz americana. Faziam fotos no letreiro com o apelido da cidade no alto de um morro, emulando o da Hollywood original, quando a reportagem os abordou.
“O Auto da Compadecida 2”, dirigido por Flávia Lacerda e Guel Arraes, repete o êxito de bilheteria do primeiro -já foi visto por mais de 3 milhões-, mas, diferentemente dele, foi filmado em estúdio no Rio, a mais de 2.000 km de Cabaceiras (e de Taperoá, também no Cariri paraibano, onde a peça de Suassuna é ambientada).
O novo filme recorreu à tecnologia de LED e realidade virtual para recriar o sertão e o universo picaresco do autor.
Ana Beatriz conta que por enquanto só viu trechos de “O Auto 2”, mas, baseada neles e no que tem aprendido de audiovisual, fez ressalvas à opção . “Locações externas dão mais realismo e criam mais identificação com o espectador sobre o universo que se quer retratar”, disse a estudante.
“Claro que o público ficou feliz com a continuação, esse filme é muito querido, mexe com o emocional das pessoas. Mas o público não é bobo, percebe que aquilo não é uma cidade real do sertão nordestino.”
Os comentários da família Aprigio encontram eco e ganham tom crítico na pequena Cabaceiras, 5.000 habitantes, que nos últimos anos viu crescer a lista de filmes e séries rodados lá -o fenômeno “Cangaço Novo” incluído- e ampliou sua vocação turística.
“Ver aqueles cenários em realidade virtual tira um pouco da magia. Eu tinha dois anos quando vieram filmar o primeiro aqui e cresci com essa magia”, afirma Mércia Farias, ex-diretora de Turismo e Cultura de Cabaceiras e atual secretária-adjunta da área. “Foi essa magia que fez uma garota mineira pedir aos pais de presente de aniversário de 15 anos para vir a Cabaceiras conhecer a cidade do ‘Auto da Compadecida.'”
Quem também viu e não gostou do “Auto 2” foi a fotógrafa Crislaine Menezes, que considerou o novo filme “muito artificial, causando até uma expressão forçada dos atores”. “Dá para ver que tem IA [Inteligência Artificial]”, desdenhou.
Crislaine nem era nascida, mas muita gente na cidade tem alguma história para contar sobre as filmagens do primeiro “Auto” em 1998. O atual secretário de Turismo e Cultura, Toninho Menezes, se apresentou com sua banda de forró, a Chapéu de Palha, numa festa em que Matheus Nachtergaele (que interpreta João Grilo) estava. “Os atores circulavam pela cidade”, lembra.
O marceneiro Manoel Batista de Lima, o Manoel de João Preto, atuou como cangaceiro figurante no “Auto 1” -“e à noite tomava uma caninha com João Grilo [Nachtergaele] e Chicó [Selton Mello]”. Desde então, trabalha como guia turístico, paramentado como atuou.
Convidou o repórter a contracenar numa cena em que o assassinou a bala em frente à igreja da cidade (a mesma do longa), filmada com celular pela secretária-adjunta Mércia.
No final de 2022, conta Mércia, produtores da Conspiração procuraram a prefeitura em busca de informações para um grande projeto, sem dizer qual. Fez-se uma reunião por vídeo para colher mais detalhes. A secretária-adjunta diz que nunca mais deram notícia. O projeto, depois ela soube, era “O Auto 2”. “Creio que desistiram e optaram por filmar em estúdio para reduzir custos”, arrisca.
Em nota enviada à reportagem, a produção do filme informou que a decisão de gravar o “Auto 2” em estúdio com tecnologia de LED “foi um conceito artístico de direção no desenho de fábula”, mas não respondeu se os custos também pesaram na decisão.
Numa entrevista quando o novo filme foi lançado, o codiretor Guel Arraes disse que o avanço da tecnologia os permitiu fazer “um filme num Nordeste um pouco mais mágico, mais fabular”, e mostrar “Taperoá como uma cidade icônica, que junta muitos aspectos do Nordeste”.
Sobre a falta de resposta às sondagens à Prefeitura de Cabaceira, a produção disse que é um procedimento habitual “para avaliação de alternativas durante o processo de criação” e que os produtores deram retorno às reuniões realizadas e são “muito gratos pela atenção” que tiveram.
Uma das produtoras de “O Auto 2”, a Conspiração foi autorizada pela Ancine em 2023 a captar R$ 18 milhões para fazer o filme, dos quais R$ 5,6 milhões via Lei Rouanet. Somando produção, direitos e campanha de lançamento, o longa custou cerca de R$ 35 milhões.
Por fim, a produção informou que há estudos com a Prefeitura de Taperoá para exibição do filme na cidade (mas não em Cabaceiras). Nenhuma das duas tem sala de cinema.
Distante 100 km de Cabaceiras, Taperoá é a cidade onde Ariano Suassuna passou a infância e cenário de “O Auto da Compadecida” e outras obras do escritor. Na casa onde ele viveu, seu sobrinho Manuel Dantas Vilar e seu filho Manuel Dantas Suassuna criaram um pequeno museu.
No espaço, painéis fotográficos contam a história do autor e uma mostra permanente reúne obras de Dantas Suassuna, que é artista plástico.
O professor e artista Felipe Sérvulo foi um dos poucos na cidade a assistir “O Auto 2”. Considera que o cenário digital transformou a “Taperoá real numa Taperoá fabular, sedimentando o reino encantado criado por Ariano Suassuna”.
Diz que sentiu falta “da música erudita da estética armorial, que poderia ser reinserida na obra, como foi feito genialmente no primeiro filme” e celebrou como “principal e grande surpresa” a “genialidade da releitura do julgamento de João Grilo”.