Pastores resistem a aderir a Lula, e acenos são alvo de patrulha

Por Anna Virginia Balloussier / Folha Press em 08/11/2022 às 08:45

Bruno Santos/Folhapress
Bruno Santos/Folhapress

O triunfo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) neste pleito freou o ímpeto bolsonarista de pastores com envergadura nacional. Após passarem a campanha demonizando o petista, eles evocaram uma orientação do Novo Testamento atribuída ao apóstolo Paulo para que “se façam súplicas, orações, intercessões e ação de graças” por todas as autoridades, porque “isso é bom e agradável perante Deus”.

Numa primeira leitura, entendeu-se que parte dessa liderança havia encontrado uma saída honrosa para praticar o bom e velho fisiologismo que parecia a guiar em outros tempos. Muitos desses nomes, afinal, já manobraram o discurso antes para justificar a adesão ao governo da vez.

Nem só da agenda moral vivem as igrejas evangélicas, afinal. Elas têm interesses concretos em manter um canal desobstruído com os governantes, como questões tributárias e parcerias com o Estado nas comunidades terapêuticas para dependentes químicos.

É precipitado, contudo, afirmar que haverá um estouro da manada em direção a Lula. Pode-se inclusive dizer que desta vez pastores esticaram tanto a corda ideológica que ficou mais complicado fazer slackline sobre ela. Mesmo os líderes que possam ver vantagem numa reaproximação com o PT devem ser alvo de fogo amigo.

Já há, nos bastidores do poder evangélico, críticas a uma postura em cima do muro associada à Assembleia de Deus Ministério Madureira, um dos ramos assembleianos mais fortes. Seu bispo-primaz, Manoel Ferreira, chegou a posar sorridente com Lula, e seu filho Abner, ao mesmo tempo em que participava de comitivas pastorais ao Palácio do Planalto bolsonarista, já elogiou o capital político do ex-presidente.

Para o sociólogo da USP Ricardo Mariano, pesquisador do tema, o patrulhamento levado a cabo por pastores durante e após a eleição “é um indicador empírico de sua radicalização política, turbinada pela aliança com Bolsonaro e pela dinâmica sectária das redes sociais”.

O efeito colateral é constranger “os eventuais pastores bolsonaristas fisiológicos dispostos a apoiar o novo governo em troca de favores políticos”, afirma.

O pastor Silas Malafaia seria, nesse sentido, um dos mais temidos por colegas, por sua oratória inflamada. Ele não vê sentido nisso. Diz não haver crítica que faça o “cara que perdeu o pudor” pensar duas vezes antes de ladear com Lula.
Malafaia, que endossou o petista em 1989 e nos anos 2000 e depois se disse arrependido, acha que uma minoria vai correr para o colo do PT. “Não sou mosca de padaria como lamentavelmente alguns poucos líderes evangélicos são. Não podem ver o doce do poder e correm pra lá.”

Afinado com o pastor, o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), membro de sua igreja e presidente da bancada evangélica, diz estar convicto de que haverá punição nas urnas para aqueles que queiram acenar ao PT.

“Precisamos entender que quem perde a eleição deve ser oposição por quatro anos. Caso contrário, a política não vai perdoar, serão considerados moscas de padaria.”

Agora que Bolsonaro perdeu a reeleição, impera o que um pastor definiu à reportagem como uma ronda ideológica, disposta a apontar o dedo para neolulistas. O bispo Edir Macedo teve que se explicar após dizer que perdoava Lula: “Não estou virando a casaca coisa nenhuma”.

“A igreja evangélica tem o dever bíblico de orar pelo Brasil e pelas autoridades constituídas para que haja paz e progresso na nossa nação”, afirma o bispo Eduardo Bravo, presidente da Unigrejas, braço da Universal, que desde Fernando Collor se alinhou a todos os presidentes.

“Por outro lado, devemos fazer oposição a todas as ideias que venham ferir a família tradicional.”

A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, apressou-se em dizer que o partido dispensava o perdão de Macedo. Ainda que tenha agido por interesses materiais, o bispo poderia ajudar a pacificar fiéis que ajudou a inflamar. Gleisi cometeu um erro estratégico que não ajuda a dirimir a desconfiança da base evangélica com a esquerda, avaliam pastores.

“A Gleisi atacou o cara, é muito burra”, afirma Malafaia. “Ele tá falando pro povo dele, ‘vamos perdoar, seguir em frente’, tá dando uma palavra espiritual.”

Ter puxado uma oração por Lula na noite da eleição não significa que vá dar uma colher de chá para o petista, diz Malafaia. “A única coisa que ele pode contar comigo é o que tá na Bíblia [orar por ele], que sou obrigado.” O apóstolo César Augusto, da igreja Fonte da Vida, trilha caminho parecido.

“Mais de 50% dos eleitores, incluindo quem se absteve de votar ou votou nulo, se decepcionou com o resultado das eleições. Isso demonstra que o país tem uma maioria de conservadores. É muito difícil o meio evangélico apoiar um governo esquerdista. Mas isso não nos exime da função sacerdotal de abençoar os governantes e crer que o próximo governo dará certo pelo bem da nação.”

No Aliança, grupo de WhatsApp que reúne Malafaia, Augusto e algumas das principais lideranças evangélicas do país, o humor é o mesmo. Lula ganhou, vamos virar a página, mas nem por isso ele contará com a nossa boa vontade.

Decretada a vitória lulista, a maioria dos pastores acatou, resignada, o vencedor das urnas. Não se repetiu o que vimos nos EUA, lembra Mariano, da USP.

“Foi um comportamento distinto dos pares da direita cristã norte-americana, capturada pelo trumpismo. Por enquanto, parece ser minoritário o questionamento golpista da disputa eleitoral no segmento.”

O sociólogo aponta que a identidade direitista na liderança evangélica recrudesceu desde a Lava Jato e o impeachment de Dilma Rousseff (PT). “Aliaram-se a Bolsonaro, integraram seu governo, marcado pelo aparelhamento religioso, e envidaram esforços descomunais para reelegê-lo. Nesse processo, muitos se radicalizaram.”

Em nenhum momento da pós-redemocratização a igreja esteve tão envolvida em um projeto político como em 2018 e 2022, afirma Kenner Terra, pastor e doutor em ciências da religião. “A adesão ao bolsonarismo marca um fenômeno incomum da relação entre evangélicos e política.”

Para entender essa comunhão, é preciso levar em conta a espiritualização da discussão -a batalha espiritual embutida no binômio bem vs. mal- e o fato de Bolsonaro ter virado “um tipo de benfeitor dos evangélicos, garantindo-lhes maior espaço no governo”, afirma Terra.

“O presidente ocupou o lugar de defensor da moral cristã no imaginário dessa parcela religiosa. Nem mesmo avanços econômicos seriam capazes de atrair da mesma maneira [os evangélicos].”

“Esses elementos são novos após o fortalecimento do bolsonarismo de 2018 pra cá”, concorda Ana Carolina Evangelista, à frente do Instituto de Estudos da Religião.

“A bancada evangélica também ganhou força para indicar seus aliados e colocar suas pautas. Existe, portanto, uma fatia de lideranças ainda mais alinhada com a extrema direita que não é mais apenas fisiológica, como em outros tempos.”

É um equilíbrio tênue, porque, se não há clima para fingir que nunca tiveram problema com Lula, também arrefeceu a predisposição para preservar a belicosidade da campanha eleitoral.

O apóstolo Estevam Hernandes havia dito em julho, quando capitaneou a Marcha para Jesus, que achava impossível se reconciliar com Lula. “Creio que [as predileções eleitorais] são caminhos bem definidos, e que obviamente se vai até o final por esse caminho.”

Orar pelo presidente eleito “não significa um aceno”, diz agora. “Pode ser que no caso de alguns seja, mas acredito que na maioria é o compromisso com a palavra de Deus.” Hernandes, contudo, conta que manterá a tradição de convidar o chefe do Executivo para o evento promovido por sua igreja, a Renascer.

Já na saideira de seu segundo mandato, o petista sancionou uma lei que instituiu o Dia Nacional da Marcha para Jesus. Lula, contudo, nunca foi ao maior ato do calendário evangélico do país. “Sempre é importante recebermos um presidente da República para orarmos por ele.”

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