Estudantes na época da tragédia, sobreviventes resgatam memórias 40 anos após incêndio da Vila Socó
Por Rodrigo Cirilo em 24/02/2024 às 08:00
As quatro décadas que separam este sábado (24) do incêndio da Vila Socó, em Cubatão, considerada a maior tragédia da Baixada Santista, com 93 mortos registrados oficialmente, não apagaram as memórias traumatizantes dos sobreviventes Marilene Santos, de 47 anos, Ednei Souza, 48, e José Mário Silva, 55. O trio estudava nas escolas do bairro (atual Vila São José), a UME Mato Grosso e a UME João Ramalho.
“Até hoje, passo na Vila e sinto o cheiro do fogo. Sei que não tem mais nada lá, mas sinto cheiro até da cal que jogaram na lama depois, para não contaminar mais. Ainda lembro do barulho que os barracos faziam enquanto estavam sendo incendiados”, descreve Zé Mario, jornalista e guarda civil de Mongaguá, que tinha 15 anos na época.
Enquanto Zé Mário e Ednei já cursavam o ensino fundamental na UME João Ramalho, Marilene frequentava o parquinho da UME Mato Grosso. Com apoio de tratamento psicológico desde o ocorrido, a aposentada revela que 1984 foi um ano muito difícil.
“Hoje falo sobre isso sem chorar como antes, mas também tive que me ausentar do parquinho porque fui estuprada”, relata. “Sinto saudades das minhas amizades. Às vezes, escuto meu amigo Nilson, que tinha uma família grande e ninguém foi encontrado, me chamando que é hora do recreio”.
De acordo com Ednei, no João Ramalho não foi diferente. Apenas na sua classe, o número de alunos caiu de 31 para 16. “Todas as turmas tinham desfalques, ficamos sem muitos amigos. Eles falam que foram 93 mortos, mas se formos ver pelas estatísticas foram umas 500 pessoas. Não sabemos se todos morreram, mas quando começaram a calçar as ruas para fazer o esgoto, ainda achavam corpos”, descreve o motorista.
“O número oficial de mortos é fictício. Foi muito maior, sem dúvida alguma. A gente via na hora de ir para a escola, comparando o número de crianças que iam antes e depois do fogo. Muitas não foram registradas, pois a família toda sumiu”, completa Zé Mario.
Cenas inesquecíveis
Nenhum dos três teve suas casas atingidas pelo incêndio provocado por um vazamento de 700 mil litros de combustível dos oleodutos que ligavam Refinaria Presidente Bernardes de Cubatão (RPBC), da Petrobras, ao terminal portuário da Alemoa. No entanto, presenciaram cenas fortes enquanto fugiam do perigo.
Marilene, que morava com seus pais e duas irmãs, foi acordada pelos vizinhos e, logo depois, seguiu para a casa de sua tia, na Vila Nova, bairro mais próximo. “Me lembro das pessoas carbonizadas, incluindo mulheres grávidas, que estavam irreconhecíveis. Também vi pessoas encolhidas dentro das geladeiras, tentando se proteger”.
Preocupado, um de seus tios saiu do Paraná para saber notícias da família. Ao lado de Marilene, ele tentou “dar uma volta no bairro’”, entretanto, o local estava interditado por bombeiros e policiais militares. Dias depois, a família pôde retornar para sua residência.
“Tinha medo de pegar fogo. Ficava o dia aqui em casa e à noite nós íamos dormir na minha tia, até passar a fase do perigo. Mas ficou aquele barulho de explosão na cabeça”.
Zé Mário também foi para a Vila Nova, com sua mãe. Contudo, retornou em seguida para pegar documentos e ajudar na contenção do incêndio e no resgate de vítimas. Aliás, Manuel Mário, um de seus amigos homenageados na placa de vítimas, não morava mais na Socó, mas morreu eletrocutado após salvar sua família.
“Está na memória, sei que vou morrer e não vou conseguir esquecer disso. Vi pessoas queimando, bombeiros e policiais se acidentando, o pessoal tentando ajudar e se machucando. Muita gente morreu na busca de salvar alguém ou algum pertence no meio do fogo”.
O guarda municipal também testemunhou saques em casas que estavam longe do alcance do incêndio. “Quando o morador chegava, derrubava ali mesmo, com faca, com paulada. Alguns mortos foram colocados como vítimas do incêndio, mas na verdade eram ladrões”.
Por perceber o vazamento desde 13h, Ednei e sua família ficaram em alerta. O motorista conta que o incêndio iniciou por volta de 23h45 e foi se alastrando pelo mangue. “Estávamos em uma distância segura, quase 400 metros de distância. Quando houve a explosão, nós corremos no sentido do Centro Esportivo. Nós ficamos lá até de manhã e depois retornamos para a nossa casa”.
Aterro afastou casos de incêndios
Zé Mário conta que, tanto a sua casa, quanto dos outros dois sobreviventes não foram atingidas por conta de diques de aterro construídos pelos próprios moradores, cerca de dez dias antes do incêndio, com as sobras da construção da Avenida Tancredo Neves. A iniciativa foi liderada por Irene Flor de Souza, líder comunitária que dá nome a uma ciclovia na Vila Nova.
“A Irene organizava mutirões e ia chamando de casa a casa quem podia ajudar, e o pessoal da rua todo vinha fazendo mutirão, derrubando os pontilhões e aterrando”, detalha Zé Mario.
Marilene morava na Rua Santa Teresinha, onde segue até hoje, mas em outra residência. Ednei, por sua vez, estava na Rua Vereador Hugo Scavanacca e agora reside na Rua Vereador José Ramos Braga. Por fim, Zé Mário mudou de cidade, mas sua mãe ainda mora na Rua Santo Antônio de Pádua.
“Essas casas, do Centro Comunitário até o mercado Bomsucesso, não queimaram justamente por causa desses diques”, conclui o guarda municipal.
Medidas pós-tragédia
Em nota ao Santa Portal, a Prefeitura informa que, de acordo com a Secretaria Municipal de Segurança Pública e Cidadania (SSPC), após o incidente, a Petrobras tomou as seguintes providências: aterro de toda a área da Vila Socó, atualmente denominada Vila São José, e consequente aterro da tubulação, controle rigoroso da tubulação por meio de sofisticados equipamentos que monitoram a pressão e resistência dos tubos de maneira diária, incluindo as condições climáticas, além da ampla sinalização da área.
Segundo especialistas, a tragédia foi um marco para a área de emergência devido às dificuldades enfrentadas no atendimento. A SSPC informa que a partir desse incidente, foram intensificados sistemas de apoio para respostas mais rápidas e eficientes envolvendo não apenas a Refinaria, mas todas as indústrias do Parque Industrial:
– o Plano de Auxílio Mútuo (PAM) que embora existisse desde 1978, só passou a funcionar efetivamente na década de 80, tornando-se referência regional, e mantem um sistema de combate a acidentes de qualquer natureza que possam colocar em risco vidas, meio ambiente, patrimônio público ou privado no Polo e na Baixada Santista;
– o Plano de Contingência que envolve todas as secretarias municipais da Prefeitura de Cubatão que estão preparadas para responder eventuais emergências do tipo.
Auxílio, sobreviventes – Segundo informações da Secretaria Municipal de Habitação, após o incêndio, a Petrobras construiu, por meio de convênio com a Prefeitura Municipal, núcleo residencial formado por 400 casas, na Vila São José. Sobreviventes da tragédia da Vila Socó foram indenizados e passaram a habitar o local que foi totalmente urbanizado, recebendo escola, creche, posto de saúde, infraestrutura urbana e calçamento.
A partir de 2017, o bairro passou por processo de regularização fundiária e em 2019, essas 400 famílias iniciaram o processo de recebimento das escrituras definitivas de seus imóveis, tornando-se oficialmente proprietárias do terreno.
Programação de homenagens
Domingo (25)
9h – Ato Ecumênico em homenagem às vítimas – Centro Comunitário da Vila São José, na Rua São Francisco de Assis, 470
10h – Homenagem – depósito de coroa de flores no marco em homenagem às vítimas
Segunda-feira (26)
17h – Sessão Solene por memória, verdade e justiça – Auditório da OAB/Cubatão, na Rua São Paulo, 260 – Jardim São Francisco.