Lula lança carta aos evangélicos e rechaça aborto, banheiro unissex e pastor que mente
Por Anna Virginia Balloussier, Catia Seabra e Victoria Azevedo/Folha Press em 19/10/2022 às 16:00
A campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) divulgou uma carta a evangélicos nesta quarta-feira (19) durante encontro com representantes de igrejas simpáticos à sua candidatura, em São Paulo.
Nela, Lula volta a se dizer contra o aborto. Seu projeto de governo, afirma, “tem compromisso com a Vida plena em todas as suas fases”, porque para ele “a vida é sagrada, obra das mãos do Criador”.
“Sou pessoalmente contra o aborto e lembro a todos e todas que este não é um tema a ser decidido pelo Presidente da República e sim pelo Congresso.”
“Em meio a este triste escândalo do uso da fé para fins eleitorais”, Lula promete assumir “com vocês este compromisso: meu governo jamais vai usar símbolos de sua fé para fins político-partidários, respeitando as leis e as tradições que separam o Estado da igreja”.
Nova sinalização à base conservadora veio no trecho em que diz entender “que o lar e a orientação dos pais são fundamentais na educação de seus filhos, cabendo à escola apoiá-los dialogando e respeitando os valores das famílias, sem a interferência do Estado”.
Seria uma vacina contra a ideia de que a esquerda quer implantar uma suposta ideologia de gênero nas salas de aula.
O texto, lido por seu ex-chefe de gabinete, Gilberto Carvalho, cita o versículo “Dai a César o que é de César, dai a Deus o que é de Deus” para dizer que “a tentativa de uso político da fé para dividir os brasileiros não ajuda ninguém, nem ao Estado, nem às igrejas, porque afasta as pessoas da mensagem do Evangelho”.
Reafirma que governou o país por oito anos mantendo “o mais absoluto respeito pelas liberdades coletivas e individuais, particularmente pela liberdade religiosa”.
Nesse período, sancionou o Dia Nacional da Marcha para Jesus e a Lei da Liberdade Religiosa para garantir personalidade jurídica a igrejas, que deixaram de ser simples entidades de classe, como clubes de futebol.
A carta alerta sobre “um período em que mentiras passaram a ser usadas intensamente com o objetivo de provocar medo nas pessoas de boa fé e afastá-las do apoio a uma candidatura que justamente mais a defende”.
Lula disse, em discurso após a leitura, que por anos teve que explicar que nem ele nem sua sucessora, Dilma Rousseff (PT), eram demônios, por que a bandeira do PT até por que tinha barba, “Jesus teve que se explicar a vida inteira, porque as dúvidas que se colocam em cima da gente é uma das armas para evitar que a gente possa exercer a tarefa de ganhar as eleições.”
“Só pode ter saído da cabeça do satanás” que ele, pai, avô e bisavô, apoiaria banheiro unissex em colégios, disse. E ainda: “Família para mim é uma coisa sagrada”.
Chamou Jair Bolsonaro (PL) de “psicopata mentiroso” e pediu a colaboração dos evangélicos na sala para conversar “com mais pessoas, sabendo que tem pessoas que não gostam da gente, saber quais dúvidas elas têm, convencer as pessoas porque eu não imaginava que as mentiras pelo celular tinham tanta força na internet”.
Para Lula, “um pastor que mente” não pode ser chamado de pastor. “A pessoa pode querer escolher o Bolsonaro como presidente, não tem nenhum problema. Mas a pessoa não pode mentir. […] Se o pastor quer fazer política, ele que vá para rua fazer política, ele não pode fazer na igreja. Não tire proveito do altar para fazer política, saia.”
Voltou ao dia em que Bolsonaro disse que “pintou um clima” entre ele e adolescentes venezuelanas. A oposição tenta associar o episódio à pedofilia, algo negado pelo presidente. “Ele acordou uma hora da manhã para tentar se explicar à opinião pública. ele não tem respeito. Não tem respeito pela verdade, pelas famílias.”
A carta é mais um aceno ao segmento, na tentativa de rechaçar notícias falsas disseminadas por apoiadores de Bolsonaro. A mais forte, reprise de uma fake news que o atinge desde 1989, é a de que ele quer fechar igrejas.
Ao lado de Lula e seu vice, Geraldo Alckmin (PSB), estavam Fernando Haddad, que disputa o governo paulista pelo PT, a deputada eleita Marina Silva (Rede-SP), ex-ministra que, nesta eleição, se reconciliou com o antigo chefe, e a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA). As duas são evangélicas.
Marina, “uma católica que quase foi freira” e que se converteu em 1997, elogiou a ideia da carta. “Interessante a ideia de assumir um compromisso de fazer aquilo que não fez”, afirmou em relação à inverdade, espalhada por ex-aliados evangélicos, de que Lula acabará com templos se voltar ao poder.
A ex-senadora disse que pode até parecer ingênuo oferecer a outra face quando se é atacado, como Jesus fez segundo a Bíblia, mas recomenda isso. “Pra face da mentira, a verdade, pra face do ódio, o amor.”
Para Eliziane, vivemos um “momento de claramente instrumentalização da fé, e isso é pecado”. “O Evangelho da cruz é esse Evangelho que não divide a sociedade brasileira, não é o Evangelho que prega a tortura”.
Alckmin lembrou que Martin Luther King, que mudou o mundo com sua luta pelos direitos dos negros americanos, era um pastor.
Benedita da Silva, o mais importante quadro evangélico do partido, definiu-se como “PTcostal”. Num ponto ela concordou com bolsonaristas: vivemos “uma guerra espiritual, uma coisa desumana”, ideia levantada com frequência pelos rivais.
O pastor Ariovaldo Ramos, veterano na esquerda evangélica, apontou que Lula “teve uma relação republicana com todas as religiões e atendeu o anseio de todos nós quando promulgou a Lei de Liberdade Religiosa no Brasil”, em 2003.
A presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann (PR), disse ser “escandaloso” ver pastores “usando o tempo de televisão para inventar e mentir sobre coisas da esquerda”.
Aava santiago, vereadora do PSDB em Goiânia, foi uma das mais aplaudidas. Da Assembleia de Deus, ela reforçou a necessidade de estar todos os dias na comunidade “dizendo que foi [Lula] quem fez o filho do crente passasse a ter três refeições por dia”.
“Faço um apelo, porque crente gosta é disso”: não permitam o sequestro da nossa fé”, afirmou e acrescentou: “Prefiro mil vezes ser de uma igreja perseguida do que de uma igreja que persegue”.
Na plateia, o cantor gospel Leonardo Gonçalves e os pastores Henrique Vieira e Ricardo Gondim eram algumas das caras conhecidas do evangelicalismo progressista, minoria nesse grupo cristão. O pastor Paulo Marcelo, que gravou peças para a campanha da Lula, e o bispo Romualdo Panceiro, ex-número 2 da Igreja Universal do Deus, também foi.
Nos bastidores, alguns questionavam se haveria tempo hábil para reverter a predileção por Bolsonaro nas igrejas. Também persistia um incômodo com acenos tímidos feitos ao segmento pelo petista, que já disse não gostar da ideia de misturar fé e política.
Enquanto o outro lado promove um tsunami bolsonarista em templos, o ex-presidente só esteve em um ato com evangélicos no primeiro turno, em São Gonçalo (RJ). Neste em São Paulo, não expandiu muito essa base -vários dos rostos são repetidos, e nenhum tem o alcance de um Silas Malafaia ou um José Wellington Bezerra da Costa, para citar três líderes que endossam o bolsonarismo.
O ex-presidente resistia à ideia de apresentar uma carta de compromissos a evangélicos, mas acabou convencido, segundo aliados.
É uma estratégia similar à que adotou em 2002, quando lançou uma Carta aos Evangélicos -versão religiosa da Carta ao Povo Brasileiro, o famoso documento divulgado para acalmar o mercado.
Ainda no primeiro turno, sua campanha preparou novo folheto, “É tempo de esperança, o Brasil tem jeito – o que os evangélicos realmente querem para o Brasil”.
“Não é a primeira vez que fazemos carta aos evangélicos”, disse Lula em sua fala. “Toda eleição há uma quantidade de mentiras nesse país que nós precisamos fazer carta ora pra Igreja Católica, ora pras igrejas evangélicas, ora outros setores.”
LEIA A ÍNTEGRA DA CARTA
“Meus Amigos e Minhas Amigas, nesta reta final do segundo turno, decidi escrever esta Carta Pública ao Povo Evangélico.
A grande maioria dos brasileiros e brasileiras que viveram os oito anos em que fui Presidente da República, sabe que mantive o mais absoluto respeito pelas liberdades coletivas e individuais, particularmente pela Liberdade Religiosa.
Como todos devem se lembrar, no período de meu governo, tivemos a honra de assinar leis e decretos que reforçaram a plena liberdade religiosa. Destaco a Reforma do Código Civil assegurando a Liberdade Religiosa no Brasil, o Decreto que criou o dia dedicado à Marcha para Jesus e ainda o Dia Nacional dos Evangélicos.
Mantenho o mesmo respeito e o mesmo compromisso que me motivou a apoiar essas conquistas do povo evangélico.
E o nosso Povo sabe também que cuidei, com especial carinho, dos mais pobres e injustiçados e assim, sob as Bênçãos de Deus, meu governo contribuiu para melhorar a vida de milhões de famílias brasileiras. Sempre penso, neste sentido, no trecho bíblico que diz: “a verdadeira religião é cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades…” (Tiago, 1,27)
Vivemos, entretanto, um período em que mentiras passaram a ser usadas intensamente com o objetivo de provocar medo nas pessoas de boa fé, e afastá-las do apoio a uma Candidatura que justamente mais as defende. Por isso senti a necessidade de reafirmar meu compromisso com a liberdade de culto e de religião em nosso País.
Todos sabem que nunca houve qualquer risco ao funcionamento das Igrejas enquanto fui Presidente. Pelo contrário! Com a prosperidade que ajudamos a construir, foi no nosso Governo que as Igrejas mais cresceram, principalmente as Evangélicas, sem qualquer impedimento e até tiveram condições de enviar missionários para outros países.
Não há por que acreditar que agora seria diferente. Posso lhes assegurar, portanto, que meu Governo não adotará quaisquer atitudes que firam a liberdade de Culto e de Pregação ou criem obstáculos ao livre funcionamento dos Templos.
Envio-lhes esta mensagem, portanto, em respeito à Verdade e ao apreço que tenho a esse Povo crente no Verdadeiro Deus da Misericórdia e a seus dedicados pastores e pastoras.
Se Deus e o povo brasileiro permitirem que eu seja eleito, além de manter esses direitos, vou estimular sempre mais a parceria com as Igrejas no cuidado com a vida das pessoas e das famílias brasileiras.
Sei muito bem que em todas as regiões do Brasil há Igrejas com Irmãos e Irmãs que trabalham ativamente nas suas comunidades com a propagação do Evangelho e com o cuidado do povo, dedicando-se a tornar mais leve os fardos espiritual e social de milhões de pessoas.
Declaro meu respeito e minha admiração pela fé, dedicação e amor com que os evangélicos realizam sua missão, seja na área da difusão do evangelho, seja na área da assistência social, proteção da infância, da juventude, das mulheres, dos idosos e das pessoas com deficiência. Da mesma forma é bem-vinda a participação de Evangélicos nas diversas formas de participação social no Governo, como Conselhos Setoriais e Conferências Públicas.
Em meio a este triste escândalo do uso da Fé para fins eleitorais, assumo com vocês este compromisso: meu Governo jamais vai usar símbolos de sua Fé para fins político-partidários, respeitando as leis e as tradições que separam o Estado da Igreja, para que não haja interferência política na prática da Fé.
Esse é um ensinamento que a própria Bíblia nos dá: andar pelo caminho da Paz com todos. Jesus nos mostra que a casa dividida não prospera. A religião é para ser respeitada e vivida de acordo com a livre escolha de cada pessoa.
Portanto, a tentativa de uso político da fé para dividir os brasileiros não ajuda ninguém, nem ao Estado, nem às igrejas, porque afasta as Pessoas da mensagem do Evangelho. Jesus Cristo nos ensinou Liberdade e paz, respeito e união, disso precisamos. E os cristãos evangélicos têm dado mostras, ao longo da História, de seu compromisso com a paz, seguindo o que Jesus ensinou: “Dai a César o que é de César, dai a Deus o que é de Deus” (Mateus, 22,21).
Outro compromisso que assumo: fortalecer as famílias para que os nossos jovens sejam mantidos longe das drogas. Nós queremos nossa Juventude na escola, na iniciação profissional, realizando atividades esportivas