Pelé só foi Pelé porque antes existiu o menino Edson
Por ALEX SABINO/Folhapress em 29/12/2022 às 18:31
Antes da final da Copa Libertadores de 2003, entre Santos e Boca Juniors, Pelé telefonou para a redação de um jornal paulista para dar uma entrevista. Quando o repórter, quase sem acreditar que aquele tom inconfundível era do Rei do Futebol, perguntou quem era, a voz do outro lada da linha respondeu:
“É o Edson”.
Chamar a si mesmo na terceira pessoa e misturar propositalmente as figuras de Edson e Pelé sempre lhe serviu como estratégia de marketing. Uma maneira a mais de cultivar a própria imagem.
Ao chegar a Santos, em julho de 1956, aos 15 anos, o garoto Edson já era chamado apenas como Pelé pelos jogadores mais velhos. O apelido Gasolina havia ficado em Bauru.
O mito nasceu com o tempo. Mas os próprios atletas que presenciaram seus primeiros anos percebem que sem os valores e a personalidade do menino Edson não existiria Pelé.
“Quando ele chegou ao Santos, avisaram que seria um fenômeno, um fora de série. Nos primeiros treinos, ele não mostrou isso. Era um bom jogador, claro. Mas outros bons garotos já haviam passado para aquele Santos e ido embora”, constatou o zagueiro e técnico Chico Formiga, morto em 2012.
Outros nomes da época, como Pepe e Urubatão, sempre citaram a timidez de Pelé ao se apresentar na Vila Belmiro. Uma inibição que chegava ao ponto de o garoto só falar quando algo lhe era questionado, o que pode ser contratempo para quem precisa se expressar não somente em campo com a bola nos pés.
Pelé só continuou no Santos porque chamou a atenção em outro aspecto.
“Ele era um menino extremamente educado. Era incapaz de responder mal para qualquer pessoa. Era sempre ‘bom dia’, ‘por favor’, ‘sim, senhor’, ‘não, senhor’, ‘muito obrigado’. Isso fez com que conquistasse muita gente, e todo o mundo gostava dele. Claro que era característica da criação que recebeu dos pais”, constatou Urubatão em depoimento de 2007. O volante morreu em 2010.
Foi o mesmo comportamento que mostrou na pensão da Dona Georgina (veja foto), na rua Euclides da Cunha, sua primeira casa na cidade.
Impressionar em campo naquela equipe seria difícil a qualquer um. O Santos de 1956 havia sido campeão paulista do ano anterior (título que acabou com uma fila de 20 anos sem conquistas) e estava a caminho do bicampeonato.
Para jogadores daquele elenco, como Helvio e Vasconcelos, o nome do menino Edson não lhes vinha para pedir passes ou dar lançamentos nos treinos. Era apenas para mandá-lo comprar maços de cigarros. O que ele obedecia sem pestanejar.
Edson serviu para Pelé ganhar tempo para se tornar Pelé. Porque, enquanto agradava mais pela educação e timidez do que pelo futebol, ele se tornou cada vez mais forte fisicamente. Suas deficiências eram corrigidas em longas sessões de treinos.
“Um exemplo disso é a perna esquerda. Quando chegou, o Pelé chutava mal com a esquerda. Isso quando chutava. Ele começou a treinar, melhorar e algum tempo depois era tão bom com a esquerda quanto era com a direita”, explica o ponta-esquerda Pepe.
Como sempre é necessário na vida, Edson teve sorte algumas vezes, e isso ajudou também ao seu futuro alter ego Pelé. Há a lendária história de que, poucos meses após sua chegada, ao perder um pênalti em jogo dos juvenis, chegou a arrumar as malas para ir embora e foi convencido a ficar.
Atletas do passado contestam isso. Lembram-se de vê-lo muito abalado, sim, mas não de ter ameaçado voltar para Bauru, onde morava sua família.
É incontestável que logo depois a história poderia ter sido comprometida pela vontade do técnico Lula de contratar o lateral Getúlio, do Jabaquara. Edson quase foi envolvido em troca que, talvez, mudaria a trajetória de Pelé. Quem impediu a negociação foi o jornalista Adriano Neiva, o De Vaney.
Ele considerou a transação tão absurda que foi alertar o presidente Athiê Jorge Coury de que aquilo seria um crime lesa-pátria para o Santos. A troca não aconteceu.
Dois anos depois, aquele menino seria campeão mundial com a seleção brasileira. Pelé já havia se tornado muito maior do que Edson. Um nome que só seria usado pelo Rei do Futebol para confundir pessoas pelo telefone.