Pelé fez história com gol 1.001, não com o 1.000, descobriu jornal em 1995

Por MARCOS GUEDES / FOLHAPRESS em 29/12/2022 às 16:55

“Vejam como o grande acontecimento tem a paisagem própria”, escreveu Nelson Rodrigues, explicando por que só havia um lugar para Pelé anotar seu milésimo gol. A festa se deu no estádio Mario Filho, o Maracanã, onde o craque converteu pênalti e definiu a vitória por 2 a 1 do Santos sobre o Vasco.

O camisa 10 bateu o goleiro argentino Andrada, foi carregado, chorou e fez um apelo emocionado pelo futuro das crianças brasileiras. Foi uma jornada histórica a de 19 de novembro de 1969, para sempre ligada à impressionante marca de quatro dígitos do rei do futebol. Aquele, porém, foi o gol 1.001 do jogador, como descobriu a Folha de S.Paulo em 1995.

Após extenso trabalho de pesquisa, reportagem assinada por Valmir Storti apontou uma inconsistência na contabilidade então aceita como a mais precisa. Faltava na lista uma bola colocada na rede por Pelé no Sul-Americano Militar de 1959, quando ele estava a serviço das Forças Armadas.

Com a relação atualizada, aquele que era considerado o gol 999, feito em amistoso do Santos contra o Botafogo-PB, em João Pessoa, tornou-se o milésimo. Na inauguração do estádio Governador José Américo de Almeida, em 14 de novembro, cinco dias antes do duelo com o Vasco, a equipe paulista triunfou por 3 a 0, e o placar ganhou números finais em outra batida de pênalti do camisa 10.

Informado 25 anos depois de que fora ele o goleiro a sofrer o gol mil, Luís Marques demorou a acreditar. Lula, como era conhecido nos tempos de arqueiro do Botafogo-PB, ficou inicialmente em silêncio. Depois, celebrou. “É uma alegria. Pelo menos foi um goleiro brasileiro, não um argentino. Fica tudo por aqui. É mais uma alegria para o futebol brasileiro.”

De acordo com ele, a jogada que resultou no gol foi construída por Manoel Maria, que já havia marcado duas vezes e deixado o Santos em boa vantagem. “Ele foi o melhor em campo, só não fez chover”, lembrou Lula. “Passou por dois ou três, e o quarto-zagueiro Lando fez a falta. O Pelé não queria bater, mas o Carlos Alberto, que era o capitão, mandou ele chutar.”

Na cobrança, o então bicampeão mundial fez uso de sua esperteza para fechar a contagem do amistoso. “Nosso técnico estava atrás do gol e gritou para eu cair no lado esquerdo, mas ele bateu no outro. Depois, o Pelé me disse que ouviu a instrução”, disse o ex-goleiro, ressaltando a precisão de seu relato: “Para mim, é como se tivesse sido ontem”.

O gol não foi celebrado como o milésimo, mas criou a expectativa para a festa. Ela poderia ter ocorrido no dia 16, quando o Santos empatou por 1 a 1 com o Bahia, na Fonte Nova, em Salvador. O craque chegou a driblar o goleiro Jurandir e a rolar a bola na direção da rede, porém o zagueiro Nildo se esticou no gramado e a bloqueou em cima da linha.

O grande momento ficou mesmo para o Maracanã. Ou para o ex-Maracanã, como dizia Nelson Rodrigues, que fazia questão de chamar de Mario Filho o estádio inaugurado em 1950 -o nome foi adotado em 1966, em homenagem ao jornalista, irmão de Nelson, logo após sua morte. Havia 65.157 pagantes e incontáveis não pagantes no campo naquele 19 de novembro.

Para Nelson, era pouco.

“Amigos, a cidade tem 5 milhões de habitantes, talvez mais. Pois esses 5 milhões deviam estar presentes”, publicou, dois dias depois do jogo, em sua coluna esportiva no jornal O Globo.

“Dirão os idiotas da objetividade que o ex-Maracanã comporta, no máximo, 250 mil pessoas. Mas os que não pudessem entrar ficariam do lado de fora, atracados ao radinho de pilha e chupando laranjas. O que acho incrível e, sobretudo, indesculpável é que alguém, vivo ou morto, pudesse ficar indiferente à mais linda festa do futebol brasileiro em todos os tempos. Sim, os vivos deviam sair de suas casas e os mortos de suas tumbas”, acrescentou.

Vivo ou morto, quem foi ao estádio experimentou enorme expectativa ao longo de boa parte do jogo, válido pelo Torneio Roberto Gomes Pedrosa. A tensão atingiu seu ponto máximo aos 33 minutos do segundo tempo, quando o camisa 10 recebeu passe de Clodoaldo e foi ao chão após choque com o zagueiro Renê. O árbitro Manoel Amaro de Lima apitou pênalti. O placar apontava 1 a 1.

“Os vascaínos quiseram atrapalhar a cobrança de Pelé e fizeram na marca do penal, na área, um buraco. A torcida, comemorando por antecipação o gol, gritava o nome de Pelé. E ele, aparentemente calmo, foi ajeitar a bola à sua maneira. Os vascaínos reclamaram. Mexeram na bola, voltaram a revolver a terra. Andrada pisou na bola, para atrapalhar ainda mais. E Pelé apenas sorria”, descreveu a Folha de S.Paulo, em sua edição de 21 novembro de 1969.
Cinquenta anos mais tarde, o craque contou ao jornal que não estava tão calmo assim.

“Todo o mundo fala que bater pênalti é fácil. Mas é fácil quando está 2 a 0, 3 a 0”, afirmou. “Eu tremi quando fui bater meu pênalti. Duvido que alguém já tenha passado por isso. Eu falava: ‘Meu Deus do céu, e se eu perder o pênalti?'”, recordou.

Não perdeu. Com sua corridinha característica, desacelerando as passadas ao se aproximar da marca, chutou no canto esquerdo de Andrada. O arqueiro saltou para o lado certo e chegou a tocar na bola, mas não impediu que a rede fosse balançada. Socou o gramado para liberar a raiva e entrou na história como personagem do gol mil, ainda que aquele fosse o gol 1.001.

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