Beth inspirou marchinha perdida de autores de 'Transplante Corinthiano'
Por Folha Press em 02/09/2021 às 11:19
Quando Beth Gomes, em 2001, teve um surto de esclerose múltipla e perdeu a visão e o movimento de um dos braços, pensou que era o fim de sua vida.
Na verdade, começava ali a jornada que lhe traria uma segunda família, sambas de marchinha e uma medalha de ouro nas Paralimpíadas de Tóquio, conquistada na última segunda-feira (30), no lançamento do disco.
“Quando ela chegou até mim, ela disse ‘acabou a minha vida, porque além de cadeirante, não vou mais enxergar, não mexo mais o braço'”, recorda-se Rosana Ferreira, neurologista da atleta.
Após o surto, Beth passou a se consultar com Rosana, que ganhou não só uma paciente, mas uma nova irmã. Beth àquela altura já não tinha mais a mãe biológica ao seu lado. Poucos anos depois, perderia também o pai. As duas, então, foram se aproximando. Uma começou a frequentar a casa da outra, começaram a viver “os melhores e os piores momentos” juntas e, aos poucos, as duas famílias se tornaram uma.
“A Beth adotou meus pais, chamava eles de ‘mamãezinha’ e ‘papaizinho’, eles a chamavam de ‘filhinha do coração’. Ela chama meu irmão de irmão, meu marido de cunhado”, diz Rosana.
A neurologista é filha de Manoel Ferreira e Ruth Amaral. A dupla tem mais de 200 composições na carreira, muitas gravadas na voz do apresentador Silvio Santos. Dentre as mais conhecidas, estão, por exemplo, “A Pipa do Vovô Não Sobe Mais”, e “Transplante Corinthiano” (“Doutor, eu não me engano…”).
Eles reivindicam até a autoria do canto “Lê, lê lê ô, Brasil”, hoje popular em quase todas as torcidas. Dizem que foram eles eles os criadores, inicialmente para programas de auditório.
Responsáveis ou não pelo embalo das arquibancadas, a certeza é que o casal foi fundamental para provar que paulistas também podiam compor marchinhas carnavalescas.
“Naquela época, o compositor paulista não tinha vez. Os cariocas gravavam as músicas lá, mandavam o sucesso para São Paulo, que depois tomava conta do Brasil. São Paulo era um carnaval interno, não saía daqui. Eu acabei quebrando essa barreira e fui muito feliz”, afirmou Manoel ao site G1, em 2009.
Como treinava em dois períodos (quatro horas de manhã e mais quatro horas de tarde), Beth Gomes aproveitava os intervalos livres para ficar com Manoel e Ruth quando eles estavam em Santos, ou mesmo em São Paulo, e ouvir as histórias e as canções do casal.
A música, inclusive, funcionava como principal ativador da memória da cantora, que tinha Alzheimer. Ela até chegava a dançar, mexendo os braços, ao assistir os programas de televisão que participou, sentada ao lado do marido. Rosana conta também que era só dizer “filhinha do coração” que a mãe se lembrava de Beth.
“É como se fosse um amor de outra vida, essa nossa amizade é fraternal mesmo, eu me sinto orgulhosa, me sinto amando e sendo amada por uma pessoa que Deus me deu”, diz a neurologista.
Cena comum na casa da família, lembra-se Rosana, era ver Manoel e Ruth conversando sobre qualquer assunto, até que de repente ele pegava uma caneta e escrevia alguns versos. Ela, então, começava a cantar. Nasceram assim incontáveis marchinhas, muitas gravadas, outras não.
“Ele falava para a Beth que ia escrever sobre as Paralimpíadas em homenagem a ela. Ele chegou a cantarolar uns versos, deixou algumas coisas escritas, mas não conseguiu acabar essa marchinha”, continua Rosana, que ainda não encontrou registros da canção no arquivo de pai.
Durante a entrevista, ela começa a rever as imagens da conquista de Beth. Solta um riso quando a atleta canta as marchinhas de Manoel e Ruth na TV e se emociona quando aparece a cena, logo após a prova, da medalhista de ouro chorando, olhando para o céu e dizendo “papai, mamãe”, em homenagem ao casal.
Manoel morreu às vésperas das Paralimpíadas do Rio de Janeiro, em junho de 2016, aos 86 anos -lúcido e feliz, recorda-se a filha.
Já Ruth viveu por mais um ciclo paralímpico. Morreu no domingo (22), oito dias antes da conquista de Beth -que ficou sabendo do fato quando já estava no Japão.
“Essa marchinha [em homenagem a Beth] tem o peso desse amor que temos entre nós, dessa coisa que temos pela Beth, o que ela representa para essas duas famílias que viraram uma”, diz Rosana.
“Eles estão lá no céu comemorando e cantando, junto aos pais biológicos dela, essa marchinha da vitória.”