Taiane Miyake expõe desafios da transição de gênero: ”prostituição não é escolha”
Por Noelle Neves em 08/06/2021 às 20:01
Aos 3 anos, Taiane Miyake tinha um sonho: ganhar uma festa de aniversário com a temática “bonecas”. Pode não parecer algo grandioso, já que muitas meninas da idade fazem pedidos parecidos para os pais. Mas esse foi o primeiro ato revolucionário que tomou na vida, mesmo sem entender.
Agora, aos 54 anos, ela, que trabalha como coordenadora da Coordenadoria de Diversidade, do Departamento de Direitos Humanos e Cidadania, da Prefeitura de Santos, reflete que mesmo sem maturidade, tinha personalidade para lutar contra o que a sociedade impunha como o certo, já que nasceu de um gênero diferente do qual se identifica.
“A minha história foi contada pela minha mãe e pela minha avó materna. Sempre diziam que iam fazer, mas o tempo passava e nada. Adoeci, fiquei internada e o médico disse à minha mãe e à minha avó, que eu nada tinha de físico, tudo era emocional, psicológico. Foi aí que minha avó contou sobre essa minha vontade. O médico conversou com minha mãe sobre a importância de se realizar e sugestionou que num determinado momento colocasse as bonecas na mesa, óbvio que na ausência do meu pai”, relembrou ela.
Apesar de percepções durante o crescimento, somente ao 14 entendeu sobre sua identidade de gênero. Na época, sem esse termo. Então decidiu conversar com a mãe e contar que “se sentia diferente”. Recebeu como conselho: “estude, pois isso será sua libertação”. E foi isso que fez, mas quando se formou, se deparou com questões muito mais profundas.
“Quem eu era na verdade? Como eu me atraía e por quem? Qual atitude meu pai ia tomar quando descobrisse quem na verdade eu era? Cheguei a pensar que Deus estaria triste comigo por eu não ser aquele que nasceu do sexo masculino. Então eu era pecador? E não tendo nada muito claro em minha cabeça, entreguei tudo ao tempo. A Taiane renasce”, contou Taiane em entrevista ao Santa Portal.
Sua história, de acordo com ela, não é diferente de outras travestis e transexuais. No início, começou a se montar para frequentar boates. Tinha uma vida dupla e transitava nos gêneros. Durante o dia, “era o rapaz que a sociedade aceitava”, porém já tinha os cabelos compridos e nos fins de semana, “se montava e colocava a Taiane à frente”.
“A Taiane era de muitas atitudes, sempre foi de vanguarda, o ‘falecido’ [como refere-se a si antes da trasição] era retraído, quase sempre não falava, não se expunha, com medo que a Taiane interferisse, coisa de louco, mas foi bem assim”, relatou.
Quando tudo mudou
A mãe de Taiane sempre soube de sua identidade de gênero, mas o pai não. E quando descobriu, não aceitou. “Com 19 anos, cursava faculdade de Jornalismo. Sem me dar chances de explicação, fui colocada na rua, com a roupa do corpo. Vaguei pela praia duas noites e dois dias sem saber o que fazer, que rumo tomar”.
“Naquele momento tentei um suicídio. Quando percebi que eu queria dar cabo de um problema e não da minha vida, foi aí que tive a ciência que os problemas poderiam ser sanados, mas a vida não, então recuei”
Taiane Miyake
Mesmo de longe, a mãe apoiava, assim como alguns amigos. Dividiu apartamento com dois deles, enquanto tentava se estabilizar. No entanto, precisou desistir da faculdade e deixar o emprego, visto que o pai expôs a situação no local. Na ocasião, era chefe de um Departamento Pessoal numa contabilidade e depois, passou a trabalhar com shows em boates noturnas.
”O pagamento dos shows não eram suficientes para a minha sobrevivência. Já estava mais do que claro que não ia conseguir um trabalho formal por conta do meu corpo, da minha transição. Então busquei subempregos, fui artesã em bijuterias, fazia e vendia, fui sacoleira, vendia roupas e camisetas customizadas, me especializei em fantasias e alegorias para escolas de samba. Nada era o suficiente, então fui direcionada para a prostituição”, revelou.
O caminho foi a prostituição
Para Taiane, ainda é desconhecido como uma pessoa transexual ou travesti chega a prostituição. Segundo ela, a grande maioria foi colocada para fora de casa, numa idade que na maioria das vezes, nem o ensino fundamental terminou, porque também foram expulsas da escola por não aguentar a pressão psicológica e as piadinhas (bullying).
“A partir do momento que ela é colocada na rua, quem acolhe essa pessoa é a rua. E a rua só tem para oferecer a prostituição, infelizmente. Desde o momento que nós, transexuais e travestis, fazemos a nossa transição, o nosso corpo sempre chegará na frente e o preconceito e discriminação ainda caminham juntos”.
Taiane Miyake
O sentimento que predominou enquanto foi prostituta era o medo. Muito medo. Medo da violência física – o que nunca sofreu, medo de ser assassinada e de ser mais um número. O Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, conforme dados do Trans Murder Monitoring.
“Eu saí da prostituição quando somente tive a certeza e a segurança de que eu conseguiria sobreviver dos projetos que eu participava, trabalhava e assim era remunerada, já que o emprego formal sempre foi negado”, contou.
Em 2012, a Prefeitura de Santos abriu um processo seletivo para Agentes de Prevenção Voluntária para atuar com travestis e transexuais trabalhadoras do sexo, levando até elas a informação e a prevenção contra IST, HIV/AIDS e as hepatites virais. Taiane prestou a prova e passou. Neste ano, completa 9 anos na atividade.
Além disso, também participou de vários projetos sociais e do âmbito da saúde, todos remunerados. “Projetos têm um início e um fim, e quando estava próximo de encerrar, eu entrava em desespero. Nunca foi sorte, sempre foi insistência e persistência naquilo que eu acreditava”, ressaltou.
Os desafios ainda são diários
Hoje, além de ser formada em Técnico em Contabilidade e Custos, Taiane é Agente de Prevenção de Saúde e está como Coordenadora da Coordenadoria de Diversidade, do Departamento de Direitos Humanos e Cidadania, da Prefeitura de Santos.
Apesar de ter uma linda história de superação, revolução e atuação política pelas causas LGBTQIA+, os desafios ainda são diários.
“O principal desafio que uma pessoa transexual ou travesti enfrenta neste país é o de estar viva. A expectativa de vida é de 35 anos de idade. Outro desafio é a falta de respeito com a gente, principalmente no sentido de apagamento dos espaços. Tivemos alguns avanços, mas nos dias atuais só vemos retrocessos. Precisamos ter mais transexuais e travestis ocupando cadeiras escolares para que tenhamos menos transexuais e travestis nas esquinas se prostituindo”, defendeu.
As oportunidades de trabalho, para Taiane, também devem ser debatidas. “O mercado ormal para gays e lésbicas nunca foi problema, por mais que existam preconceito e discriminação, essas pessoas sempre foram aceitas. Para transexuais e travestis sempre nos foi negado, por conta dos nossos corpos que são políticos, que se destacam antes do nosso currículo ser apreciado. Quando vejo anúncios de empregos específicos para transexuais e travestis, a grande maioria das empresas pede qualificações absurdas, que ainda não condiz com a realidade desta população. A leitura que faço é que somente querem se autopromover ou cumprir um protocolo”.
Ativismo político
A política chegou muito cedo para Taiane muito cedo. Para ela, o ativismo iniciou com 3 anos de idade, quando percebeu ter predileção por coisas contrárias ao gênero de nascimento.
“Lógico que eu não tinha nenhuma maturidade, nem entendimento, mas já sabia que eu não era o macho que meu pai esperava que eu fosse. Com o passar do tempo e após a minha transição, me percebi socialmente invisível, com isso fui em busca da garantia dos meus direitos”, explicou.
A partir desse momento, se deparou com outras pessoas transexuais e travestis reivindicando seus direitos e se juntou a elas, quando, de fato, passou a se considerar militante. Ano passado, participou do pleito eleitoral a uma vaga do legislativo em Santos, mas não teve sucesso, embora seja um nome forte na luta pelas causas LGBTQIA+.
“As pessoas ainda preferem eleger pessoas hétero cis, que uma LGBT+ politizada, que tem o real compromisso com a causa, e isso já foi provado através das várias ações afirmativas que teve a minha participação”, pontuou.
Taiane Miyake
Uma sociedade digna
Em junho, é celebrado o Orgulho LGBTQIA+, escolhido por ser quando ocorreu a rebelião de Stonewall, marco do movimento de liberação e orgulho da comunidade.
Durante todo o mês, histórias de luta, superação e amor-próprio ganham visibilidade e ressaltam a importância de garantir equidade, já que esta é o caminho para um mundo mais justo.
“Nós, LGBTQIA+, em especial, Mulheres Transexuais e Travestis, não queremos privilégios. Queremos dignidade, respeito e o direito de viver numa sociedade mais justa e igualitária e deixar claro para os ignorantes e intolerantes, que não somos somente um pedaço decarne nas esquinas. Somos humanos, somos vidas”, concluiu.