Lidar com mais de 200 tipos de câncer é desafio da oncologia
Por Gabriel Alves/Folhapress em 04/02/2025 às 10:34
Um dos grandes desafios da atualidade é o crescente número de diagnósticos de câncer, a segunda maior causa de morte no mundo, com cerca de 10 milhões de óbitos anuais, atrás apenas das doenças cardiovasculares, como AVC e infarto. E um gargalo é saber lidar com a multiplicidade dos cânceres -já são mais de 200 tipos catalogados. As histórias de vida também pesam na jornada oncológica, já que cada um, com seu organismo, lida de forma diferente com a doença.
Nesta terça (4), é celebrado o Dia Mundial do Câncer, promovido pela IUCC (União Internacional para Controle do Câncer), e o mote da campanha deste ano é “unidos pelo único” (united by unique), em prol de um cuidado centrado na pessoa.
Há 11 anos, a publicitária Fernanda Natel, 35, percebeu uma bolinha na axila. Não doía e não a preocupava tanto, mas, após seu pai insistir, foi ao dermatologista, e marcou uma cirurgia, em consultório, para remover a tal bolinha. O problema foi que ela voltou a crescer, e notou-se que era vascularizada, ou seja, que era alimentada por vasos sanguíneos. Mau sinal.
Nova cirurgia, agora num hospital, e nova análise anatomopatológica. Era câncer, um sarcoma de Ewing, um tumor raro e agressivo. A doença costuma afetar crianças e adolescentes, é mais comum no sexo masculino e aparece mais nos ossos do que em partes moles (mostrando que certezas absolutas não combinam com medicina).
Apesar da raiz comum (um crescimento anormal e desordenado de células, com capacidade até de invadir outros órgãos e atrapalhar o funcionamento do organismo), cada câncer tem seu próprio conjunto de fatores de risco, embora alguns, como sedentarismo, tabagismo e obesidade, apareçam em diversas listas e contribuam também para o aumento de tumores em pessoas jovens.
Fernanda, aos 24 anos, porém, não tinha esses fatores de risco ambientais, derivados da alimentação e do estilo de vida, que são responsáveis por entre 30% e 50% das mortes por câncer. Ela sempre teve uma vida ativa, até praticava wakeboard (aquele esporte com prancha no qual a pessoa é puxada sobre a água). Provavelmente algum gene deve ter entrado na conta e pesado a favor do surgimento da doença.
Além da terceira cirurgia, que invadiu oito centímetros no músculo para remover qualquer sinal do tumor, Fernanda passou por 51 sessões de quimioterapia, num regime que combinava cinco drogas diferentes, e por 26 sessões de radioterapia. Antes disso, congelou óvulos, por causa do risco de perda da fertilidade -manter a chance de ser mãe era uma das suas prioridades e uma motivação para enfrentar a tempestade.
“A gente passa mal, tem ferida no corpo inteiro. É ruim até para fazer xixi, porque vem ferida lá, ferida aqui… Tudo que você pode imaginar. Mas enfrentar tudo com sorrisos, com alegria, foi minha forma de sobreviver na cabeça, porque é uma doença muito cabeça. Se você se deixar levar, você vai embora, porque é muito difícil, dói tudo”, relata Fernanda.
Todo o processo durou mais de dois anos. Agora, há mais de oito anos livre da doença, passou a fazer somente acompanhamento anual com seu médico. E teve dois filhos, João Pedro e Martina (sem precisar dos óvulos congelados).
Segundo a IUCC, ao colocar as necessidades individuais no centro das decisões, os sistemas de saúde se tornam mais eficazes e humanos, levando a melhores taxas de sobrevivência e qualidade de vida. Outras iniciativas sugeridas são programas de saúde na comunidade, treinamentos culturais para melhor abordagem, expansão de serviços de telessaúde, programas de navegação (acompanhamento) do paciente e letramento de saúde da população. Outra ideia é trazer aqueles que tiverem experiência com câncer para desenhar políticas públicas.
Rodrigo Munhoz, oncologista do Hospital Sírio-Libanês que acompanhou Fernanda, explica que é preciso haver simultaneamente infraestrutura central especializada e capilaridade para detectar e tratar casos de tumores mais raros. “São tumores dos quais ninguém suspeita. Talvez você já tenha ouvido falar de lipoma, aquela bolinha de gordura. É um tumor benigno, ele até pode crescer, mas ele não é um câncer. Por outro lado existe o lipossarcoma, que é um câncer. E as ‘imitações’ dos sarcomas, benignas, são muito mais comuns do que os sarcomas. Isso dificulta o diagnóstico e traz um desafio.”
O câncer pode acontecer de forma intempestiva, de uma hora para a outra, como o de Fernanda, mas muitas vezes não é isso que acontece, ele é resultado de fatores cumulativos -há chance de parar ou reverter o processo. “Quanto maior a exposição você tenha a fatores agressores, esses fatores sabidamente associados ao câncer, maior a chance de, primeiro, o dano acontecer, segundo, de algum dos mecanismos de reparo não dar conta”, diz Munhoz.
Fernando Maluf, diretor-associado de oncologia da BP – Beneficência Portuguesa de São Paulo e membro do comitê diretivo do Hospital Israelita Albert Einstein, diz que, apesar dos bons resultados obtidos no combate ao tabaco, agente sabidamente cancerígeno, é preciso ter um combate mais incisivo ao cigarro eletrônico, além de políticas públicas em prol de uma melhor alimentação, com menos impostos para comida saudável. E seria preciso haver impostos mais altos sobre bebidas alcoólicas, já que o álcool está ligado ao câncer colorretal, de mama, esôfago, boca, garganta e outros.
Os especialistas alertam ainda para os tumores preveníveis por meio de vacinas de hepatite e HPV, além daqueles que podem ser encontrados em estágio precursor ou inicial por meio da realização de exames de rastreamento (PSA, mamografia, colonoscopia), cujo oferecimento ainda é heterogêneo no país, com pior acesso nas regiões Norte e Nordeste.
“Os grandes gargalos envolvem, ainda, um subfinanciamento do sistema público, falta de tecnologia, seja informatização ou inteligência artificial, falta de formação mais apurada dos profissionais de saúde e, dentro de todo esse contexto, um olhar mais específico para o câncer, que é uma área que, nas últimas décadas, nenhum governo privilegiou”, afirma Maluf.
Estar atenta à própria saúde, com um empurrãozinho do pai, foi justamente o que ajudou Fernanda. “Essa bolinha poderia ter tirado a minha vida. Às vezes a gente está tão na correria do dia a dia que a gente não olha pra dentro, sabe? É muito importante a gente valorizar a nossa saúde, fazer check-ups e ir atrás, porque a gente nunca acredita que vai acontecer com a gente, mas pode acontecer”, diz ela, que criou uma conta no Instagram (@vou.tirar.de.letra) para falar da sua jornada.
Para quem passa por situações semelhantes, Fernanda aconselha: “É difícil, é um furacão, você para a sua vida, passa mal, perde esperança e oportunidades. Mas não tire o sorriso do rosto, faça coisas que vão te botar pra cima, que vão te deixar com a cabeça bem, esteja perto das pessoas que você ama, porque é disso que a gente precisa.”