Experiência no Qatar enfraquece Fifa em embate com Arábia Saudita por cerveja na Copa de 2034
Por Luciano Trindade/ Folha Press em 11/01/2025 às 11:00
Em 18 de dezembro de 2022, dois dias antes da abertura da Copa do Mundo, a Fifa (Federação Internacional de Futebol) surpreendeu muitos turistas que se deslocaram ao Qatar ao anunciar que não seria permitida a venda de cerveja dentro dos estádios do Mundial e em seus arredores.
A decisão tomada às vésperas do torneio causou prejuízo à Budweiser, uma das principais patrocinadoras do torneio, obrigada a recolher os produtos com álcool, que seriam comercializados nas arenas três horas antes e uma hora depois de cada jogo.
A fabricante de cerveja pagou US$ 75 milhões (R$ 405 milhões, na cotação da época) para patrocinar o evento. Torcedores estrangeiros que viajaram ao Qatar se decepcionaram com o veto à cerveja, tema que preocupava a Fifa desde o anúncio do país do Oriente Médio como anfitrião da Copa.
A experiência é vista pela entidade como uma lição e voltará a ser debatida nos próximos anos com a escolha da Arábia Saudita para receber a Copa do Mundo de 2034, tornando o reino a segunda nação islâmica a sediar o maior evento de futebol.
O país, considerado mais restritivo do que o Qatar, é regido por leis islâmicas, que proíbem o consumo de álcool. De acordo com a constituição saudita atual, as penalidades para quem desrespeitar a regra podem incluir multas, prisão ou deportação para expatriados. Esse tipo de consumo foi proibido no país pelo rei Ibn Saud em 1952.
Uma rara concessão foi anunciada em 2024, quando o governo indicou a abertura de uma loja na capital Riad para a venda de álcool a um público restrito, formado por funcionários diplomáticos. A intenção era “combater o comércio ilícito de produtos e bens alcoólicos recebidos por missões diplomáticas”, informou o CIC (Centro de Comunicação Internacional).
Mas isso não significa que a Copa do Mundo de 2034 também terá uma permissão especial. Questionadas pela Folha, a Fifa e o governo saudita não se pronunciaram sobre o tema, mas, de acordo com o jornal inglês The Guardian, não haverá a venda de bebidas alcoólicas nos estádios e seus arredores durante o megaevento.
Com quase uma década até a realização do Mundial, a questão ainda pode ser revista, principalmente quando terminar o atual contrato da entidade máxima do futebol com a AB InBev, dona da marca Budweiser, em 2026. A empresa quer ter mais clareza sobre o cenário para 2034 antes de discutir uma renovação.
Contudo, declarações recentes do ministro dos esportes da Arábia Saudita, o príncipe Abdulaziz bin Turki Al-Faisal, indicam que o país não deve ceder a pressões externas. Em entrevista à Sky News, ele afirmou que seria islamofobia obrigar a Arábia Saudita a mudar suas restrições.
“Se você é contra isso, não deve aproveitar sua vinda [a Arábia Saudita]. Se não consegue respeitar essa regra, então, não venha. É simples assim”, declarou o ministro.
Nos últimos anos, a Arábia Saudita passou a investir cifras milionárias para sediar eventos esportivos, como corridas de F1, eventos importantes do circuito de tênis, lutas de boxe e até decisões de campeonatos europeus, como a Supercopa da Espanha e a Supercopa da Itália. Em nenhum deles são permitidos a venda e o consumo de álcool. Na F1, por exemplo, em vez do tradicional champanhe, os pilotos celebram suas vitórias no pódio com água de rosas.
Entidades que defendem os direitos humanos, como a organização Human Rights Watch, acusam o país de usar o esporte para tentar reconstruir sua reputação, o chamado “sportswashing”, utilizado por governos, sobretudo autocratas, para mudar sua imagem perante a comunidade internacional.
A própria candidatura da Arábia Saudita para receber a Copa do Mundo faz parte do programa Vision 2030, que tem o objetivo de promover um “projeto de reforma econômica e social transformadora” para abrir o país ao mundo. O objetivo principal, porém, é diversificar a economia, baseada atualmente na produção de petróleo e gás.
A antropóloga Francirosy Campos Barbosa, que concluiu um pós-doutorado em teologia islâmica pela Universidade de Oxford, afirma que, mesmo com esse projeto, a Arábia Saudita não deve mudar sua posição em relação ao consumo de álcool.
“Para além das questões religiosas e éticas presentes no Alcorão e nos Hadiths, a proibição do consumo de álcool no islã também reflete valores sociais que buscam prevenir conflitos, crimes e desigualdades frequentemente agravados por seu uso”, diz a antropóloga.
A pesquisadora, no entanto, acredita que possam ser criados o que chamou de “bolsões ocidentalizados”, onde poderia existir uma exceção.
“Se a Arábia Saudita está se permitindo fazer uma Copa do Mundo e a Fifa está aceitando e já tem a experiência do Qatar, a gente tem que olhar para os dois lados. Haverá certamente algumas concessões”, afirma.
Em 2014, ao realizar a Copa do Mundo no Brasil, a Fifa se impôs, passando por cima de leis estaduais como a paulista, que proíbe o a venda de álcool nas arenas esportivas como medida para reduzir a violência no futebol.
Oito anos depois, em 2022, foi a entidade máxima do futebol que teve de ceder à pressão do governo do Qatar e aceitar o veto à cerveja. Não será surpresa, portanto, uma nova derrota da entidade na queda de braço com a Arábia Saudita.