13/07/2022

DIA DO ROCK

Patty Smith, leitora de Roberto Bolaño

Por Alessandro Atanes em 13/07/2022 às 15:04

Versão editada de dois textos publicados originalmente em fevereiro de 2017 no porto Blog n’ Roll


A escritora e compositora Patti Smith, ícone do rock alternativo, dedica uma conferência ao escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) realizada em 26 de novembro de 2010 na Casa das Américas, em Madri, Espanha, durante a Semana do Autor daquele ano, dedicada ao escritor chileno.

Aproveito o Dia do Rock deste já distante 2022 para explorar o diálogo entre a roqueira escritora e o escritor roqueiro (veja em https://youtu.be/6jt4qMLSIyY a conferência completa).

I

Além de leitora sensível, sua própria atividade de escrita está repleta de ecos (para ficarmos em uma expressão sonora) da obra do chileno, como em seus romances O ano do macaco e Devoção (ambos publicados em 2019 no Brasil). Na conferência, ela conta como nos sentimos em contato com a obra de Bolaño, como se fizéssemos parte daquilo, uma leitura que sempre nos faz pensar que, se escrevêssemos, seria aquilo ali que escreveríamos, a sensação de quem encontra um clássico: “É algo que sentimos quando andamos na rua à noite na chuva e colocamos um casaco”.

Ao lermos sua obra, continua Patti Smith, fazemos uma conexão pessoal com o au7tor e conhecemos até suas linhagens – a literária, na qual ela reconhece um parentesco com Walt Whitman (1819-1892), Allen Ginsberg (1926, 1997) e Wiiliam Blake (1757-1827), três nomes da poesia em inglês dos quais trata o próprio Bolaño em seus textos.

Tendo começado a ler Bolaño pelo romance Os detetives selvagens, é 2666, sua obra póstuma, que Patti Smith recomenda: “Ler uma obra-prima escrita em meu próprio tempo, por alguém mais novo do que eu, é um alívio e uma alegria e algo que dá esperança”.

É dela uma homenagem de 100 versos para o escritor chileno: o poema Hecatombe. O tom de homenagem se nota nessa tradução do trecho final, em que poetiza a experiência de deslocamento a que nos levam as grandes leituras:

[…]

A roupa do poeta é a pele

Com bolsos de abismo

Forrado em verso iâmbico

Sua faca é um brinquedo

Espiralando o universo

Marcando um céu curvo

Uma trilogia de números

Selando um crânio com arame

Seu torso ossudo ele expande

Mergulha no lago cheio de vida

Desatrelando para todo o sempre

Uma centena de guirlandas laureadas

E teu corpo encantado

Alça tua travessia

Ascende pelo centro

Dança sobre a água

Um tempo lento de dança

Estremecendo a terra

Com tua fúria estática

Patti Smith, 2010.

II

Deixemos os próprios escritos de Bolaño nos guiarem pelo labirinto de inter-relações entre as obras. Em Amuleto (1999), romance narrado em primeira pessoa por Auxilio Lacouture, conhecemos o significado da homenagem quando a protagonista lembra de uma conversa em que seu interlocutor lhe fala sobre o mito de Erígone e da “hecatombe espiritual” de Orestes:

“Sabe o que significa uma hecatombe? Eu identificava essa palavra com uma grande guerra nuclear, de modo que preferi não dizer nada. Mas Coffeen insistiu. Um desastre, falei, uma catástrofe. Não, disse Coffeen, uma hecatombe era o sacrifício simultâneo de cem bois. Vem do grego hekatón, que significa cem, e boûs, que significa boi. Embora na Antiguidade estejam registradas algumas hecatombes de quinhentos bois. Pode imaginar?, perguntou. Sim, posso imaginar qualquer coisa, respondi. Cem bois sacrificados, quinhentos bois sacrificados, a fumaça do sangue devia feder à distância. Os participantes enjoavam no meio da tanta morte. Posso imaginar, falei.”

Já o verso da “trilogia de números” refere-se claramente ao título do romance póstumo 2666, ainda que na estrutura a homenagem de Patti Smith se pareça mesmo com os versos curtos de Los Neochilenos, uma épica roqueira latino-americana em que Bolaño narra a turnê de uma banda de rock por cidadezinhas do interior do Chile e do Peru em uma camionete desde Santiago até Lima.

Escrito em 1993, o longo poema de versos curtos, muitas vezes com uma ou duas palavras, faz parte do Tres, livro com outros dois textos de prosa poética publicado no ano de 2000 em Barcelona pela editora Acantilado. Naquele mesmo ano, Bolaño escrevia simultaneamente os poemas de Los perros românticos, publicado em 2010 pela mesma editora, e chegava à versão final de La Universidad Desconocida, também poesia, sobre o qual trabalhava desde 1979. Inédito até 2007, esse foi publicado pela Anagrama com quase 500 páginas, reunindo partes das obras anteriores, inclusive Los Neochilenos. O volume sai com tradução no Brasil em 2022

Concluída um pouco antes do estouro de La Literatura Nazi en América (1996), Estrela Distante (1997) e Os detetives selvagens (1999), sua obra poética já trazia os temas que iriam dominar seus romances e contos nos anos seguintes até o romance-testamento 2666: a violência como traço característico da América Latina, em especial a praticada contra mulheres; a ligação entre o nazismo e as ditaduras do Cone Sul; a viagem e o exílio; a figura do poeta como detetive; e uma forma muito própria de homenagear seus autores amados, desde bastiões como Borges a pequenos burocratas das letras com bom coração.

Em nota ao livro datada de 1992-93, Bolaño conta que Los Neochilenos foi o “último poema que escrevi para a La Biblioteca Desconocida”. Aí, nesse poema que o autor escolheu para encerrar sua obra em versos, acompanhando a turnê dessa banda de rock, fazemos também um passeio pela obra deste que é considerado um dos mais importantes autores contemporâneos de língua espanhola.

Deixando Santiago, conhecemos os nomes de uma série de cidadezinhas que ajudam a dar o tom melancólico da viagem:

“Estávamos prontos para atuar:

Pancho Relâmpago

E os Neochilenos.

Um pequeno fracasso

Como uma noz,

Ainda que alguns adolescentes

Nos ajudaram

A enfiar de volta na camionete

Os instrumentos: crianças

De Toco

Transparentes como

As figuras geométricas

De Blaise Pascal.

E depois de Toco, Pilpilco, Quillagua,

Hilaricos, Soledad, Ramaditas,

Pintados e Humberstone,

Tocando em salões de festa vazios

E bordéis transformados

Em hospitais de Liliput,

Algo muito, muito estranho que tivessem

Eletricidade, muito

Estanho que as paredes

Fossem semissólidas, enfim,

Locais que nos davam

Um pouco de medo

E no quais os clientes

Estavam de caprichos com

O fist-fucking e o

Feet-fucking,

E os gritos que saíam

Das janelas e

Percorriam o pátio cimentado

E as latrinas ao ar livre,

Entre armazéns cheios

De ferramentas oxidadas

E galpões que pareciam

Recolher toda a luz lunar,

Nos deixavam com os pelos

Arrepiados.

Como pode existir

Tanta maldade

Em um país tão novo,

Tão pouquinha coisa?

Por acaso é este

O Inferno das Putas?

Perguntava-se em voz alta

Pancho Ferri.

E os Neochilenos não sabíamos

O que responder.”

III

Uma das trabalhadores do bordel passa a acompanhar o grupo em direção ao “norte que imanta os sonhos e as canções sem sentido aparente dos Neochilenos” (em Os detetives selvagens, o tema se repete: os protagonistas, dois jovens poetas da capital do México, convidam para sua viagem ao deserto uma amiga prostituta que estava fugindo do cafetão). Pancho, em delírios de febre, muda o nome do grupo enquanto cruzam a fronteira com o Peru para Pancho Mistério e os Neochilenos:

Como um bando de ladrões,

Saímos de Arica

E cruzamos a fronteira

Da República.

Por nossos semblantes

Poderia-se dizer que cruzávamos

A fronteira da Razão.

E o Peru legendário

Abriu-se ante nossa camionete

Coberta de pó

E imundices,

Como uma fruta sem casca,

Como uma fruta quimérica

Exposta às inclemências

E às afrontas.

Esse tom de desolação, de toda uma geração perdida (tema que volta ao final de Amuleto) encerra o poema, e toda essa fase de escrita poética de Bolaño, abrindo caminho para a colossal obra que começava a ser gestada:

“Em um feliz dia de janeiro

Cruzamos

Como filhos do Frio,

Do Frio Instável

Ou do Ecce Homo,

A fronteira com o Equador.

Pancho então tinha

28 ou 29 anos

E logo morreria.

E Margarita 17.

E nenhum dos Neochilenos

Passava dos 22.”

Estante

Roberto Bolaño. Tres. Acantilado: Barcelona, 2000.

Roberto Bolaño. La Universidad Desconocida. Anagrama: Barcelona, 2007.

Leia o poema Hecatombe completo em inglês neste perfil da autora. Há uma edição de 2015 feita por La Oficina del Doctor com ilustrações de Suarez London.

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