15/12/2022

NOTAS DA TARRAFA#1

O universo reversível de Natalia Barros

Por Alessandro Atanes em 15/12/2022 às 14:56

Não é porque a montanha é verde ou o mar é azul que nós os amamos, ainda que demos essas razões para a nossa atração; é porque algo de nós, de nossas lembranças inconscientes, no mar azul ou na montanha verde, encontra um meio de reencarnar. E esse algo de nós, de nossas lembranças inconscientes, é sempre e em toda parte resultado de nossos amores da infância, desses amores que a princípio se dirigiam apenas à criatura, em primeiro lugar à criatura-abrigo, à criatura-nutrição que foi a mãe ou a ama de leite…

Marie Bonaparte


I Aprendendo a nadar

Ainda que não faltem Ulisses e sereias nos poemas e prosas poéticas de Natalia Barros, o mar que lemos em seus textos não é o mar da aventura, das navegações, mas o mar maternal da cidade natal. Ou talvez até mesmo o mar de uma aventura em tom menor, a da criança que brinca na praia, uma aventura em pequena escala, ainda que infinita, como lemos em Mar de Santos:

… demoro para caminhar até o fundo, ando muito até a água chegar na altura da barriga, no ponto exato que o corpo começa a esfriar. é com água na cintura que começa essa história. é abaixo da cintura que sinto a correnteza me puxando para o fundo. tento resistir. estranho aquela força me levando mais e mais para o fundo. não tem quase ninguém mais no mar, que a essa hora está cor de chumbo. só eu e um homem muito magro com os músculos ainda desenhados, apesar da idade avançada, cabelos brancos e o peito nu que mostrava sua pele curtida pelo sol. ele se mantém firme, em pé, impávido, estende a mão e me ajuda a voltar para o raso. eu tenho cinco anos. quando olho para trás, o velho tinha desaparecido, estamos sós, o mar e eu. não chamo de sonho o que vivi, mas de memória do encantamento.

A autora no lançamento de A Insurreição da flor na Realejo Livros

Mar de Santos, do livro A insurreição da flor (Demônio Negro, 2022) reelabora poeticamente um parágrafo de MAR, BELO MAR SELVAGEM – VICENTE DE CARVALHO, texto que encerra Caligrafias (Ofício das Palavras, 2012), seu livro de estreia, homenagem a Vicente de Carvalho no título e memória de ter crescida na cidade de mar:

Mar bravio.

Numa tarde, num lugar onde diversas ocasiões já tinha nadado, apesar da aparente calma do sol escaldante do versão, escondida, a correnteza puxava para o fundo. Tão forte que se eu brigasse, perderia. Fiquei ali, temerosa e atenta. fui regatada por um banhista que, por sorte, passava por ali.

Nesse mesmo texto, Natalia Barros conta que de tanto ir à praia acabou por aprender a nadar e, “apesar do medo”, conheceu o fundo, “um tesouro particular”. Em A Água e os sonhos: Ensaio sobre a imaginação da matéria, o filósofo Gaston Bachelard trata do aprender a nadar como uma realização épica que responde ao “convite ativo da água”:

Na água, a vitória é mais rara, mais perigosa mais meritória que no vento. O nadador conquista um elemento mais estranho à sua natureza. O jovem nadador é um herói precoce. […] Os primeiros exercícios do nado ensejam um medo superado.

II Da memória à poesia

Relendo o texto de encerramento do Caligrafias em relação aos demais poemas de Natalia, parece-me ele uma coleção de memórias ponteadas por marcações – mar bravio, mar aberto, mar incontinente, mar selvagem, mar português, mar de calmaria, mar épico, mar esmeralda – que serão retrabalhadas pela autora na expressão poética. Assim como Mar de Santos ecoa o trecho acima, Geografias, do livro de 2012, ecoa – ou faz ecoar, pois é anterior – a descoberta do fundo:

Geografias

portos istmos lugares
fontes cristalinas
ocasos luares
continentes estrangeiros
arquipélagos baías
epidermes planícies
rios fiordes vales
abismos íntimos
estuários olhares

quero voltar ao que não conheço

às profundezas e superfícies

dos cinco oceanos
e dos sete mares

Marítima, também do Caligrafias, talvez seja o poema que melhor mostre o mar como espaço de formação, de nutrição, se pensarmos na reflexão de Marie Bonaparte, citada justamente por Bachelard em seu ensaio:

Marítima

trago o mar dentro de mim

dá para perceber
pelas ondas
marolas
ressacas

pelo gosto de maresia
pela cantiga das gaivotas
dos mergulhões

pelas guelras
conchas
cardumes
brisas

pelas vagas em brasa
O poema Marítima e a anotação de Jeanice

A “marcação” mar português não é à toa. Jeanice Ferreira, a sábia bailarina, anotou um nome ao lado do poema de Natalia, o da poeta Sophia de Mello Breyner Andersen, portuguesa, autora de:

Mar sonoro

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.

Mar de Santos traz outra imagem que permite essa reflexão que nos leva da memória à poesia, a da criança com água na cintura (“é com água na cintura que começa essa história”), linha divisória entre a metade do corpo que permanece no nosso mundo e a metade do corpo já submersa, uma forma de ter junto a si a inalcançável linha de horizonte que espelha mar e céu. Linha do horizonte que para a autora é uma analogia para a própria poesia: “É nítida, mas quando se chega não está lá, está mais à frente”, disse em entrevista para a Estante durante a Tarrafa Literária onde participou, em 18 de novembro, da mesa Poesia popular brasileira. Ritmos e palavras, ao lado de Stephanie Borges. Tudo isso está no poema O espelho do mar:

O espelho do mar

No barco, na voadeira, o mar impressiona
Sinto-me voltando para casa quando estou na praia.
A casa de dentro encontra a casa de fora. Encaixo no eixo.
Do meu quarto ouço o barulho do quebrar das ondas;
sem embalada por esse som me ancestraliza.
A vila de pescadores permanece no tempo.
Pesca de lula e vieiras, redes, sarrafos, barco de pesca e passeio.
Todo dia alguém na lida.
As gaivotas voltam para as montanhas no final da tarde.
Reparto silêncios.
Quando encontro o mar é como se estivesse
encontrando meu melhor amante,
aquele que conheço e que amplia o desconhecido.

Sete horas: a prata do céu e a prata do mar se igualam.

Tudo no poema soa à duplicidade, o barco que tem nome voadeira (ah, a sabedoria mitológica dos nomes das coisas!), a casa de dentro e a casa de fora, o quarto e as ondas, animais marinhos e gaivotas e a duplicidade final da prata do céu e do mar. Duplicidade que está também na abertura de Santos:

creio no encontro das águas. o rio venoso da cidade arterial. todos os caminhos da cidade são feitos pela água. nadar é andar. todas as ruas são águas fluindo na sustentação do osso. no exoesqueleto da ternura, da delicadeza. ‘o resto é mar’ que só pode ser visto sempre pela primeira vez.

III Zoologia fantástica

No ensaio O Universo Reversível, que abre seu livro Figuras, Gérard Genette conta que a duplicidade – ou a afinidade – entre mar e céu é um tema típico do Barroco, uma consequência da descoberta poética do Novo Mundo representado pela América: “Primeiramente, voo e natação propõem ao homem o mesmo ideal de propulsão fácil, de uma felicidade onírica e, de alguma forma, miraculosa”. Enquanto nos deslocamos no plano, peixes e pássaros movimentam-se tridimensionalmente, daí nosso encanto, daí a ideia de permeabilidade entre as águas e o ar; “Caminhar é servidão, voar e nadar são ambos liberdade e posse”, daí a força poética dessa duplicidade, desse espelho que encontramos nestes poemas e textos de Natalia Barros. Neste livro de 1966, Genette está falando de poetas barrocos de séculos atrás, mas parece que é dela de que trata.

Metamorfose ainda mais perturbadora porque desperta no poeta a lembrança de longínquas travessias rumo a essa fabulosa Linha onde começa o avesso do mundo e onde se cumprem todos os prodígios…

[…]

Quem pode afirmar realmente que não haja no fundo da água um outro sol, tão real quanto o nosso, do qual seria uma espécie de réplica?

Entreato afetivo: Conheci a escrita de Natalia Barros por sugestão de Jeanice, assim como ouvi dela com empolgação seu maravilhamento com a leitura do Figuras. Por uma daquelas coincidências de leitura (nem tão coincidências assim, não é?) aqui se misturam esses universos. Foi com Jeanice também que dividi a leitura do Bachelard. Sem ela, esse texto seria impossível.

Mas Natalia Barros não é barroca, historicamente, pelo menos. É uma autora das primeiras décadas do século XXI e seus textos se parecem muito pouco formalmente com as figuras que Genette apresenta de Saint-Amant, Chevreau ou Gôngora. Alguns de seus poemas têm uma pegada pop, outros são visuais. Faz poesia também de peixes e pássaros, além de plantas, mas sem esse duplicidade entre as espécies, elabora mais um mostruário delas. Não é o caso de carimbá-la. Além de temática, ou mesmo mítica, essa duplicidade que traz ecos barrocos é também formal, como no poema chamado justamente Linha do horizonte, dividido ao meio pelo olhar encantado:

Linha do horizonte

o mar imenso
a areia cinza
a janela grande
a casa da avó
a cozinha arrumada
a estante alta
a garrafa ao alcance
o licor de música
o danúbio azul
as lâminas de ouro
a bailarina valsa

eu olho encantada

a valsa da bailarina
o ouro em lâminas
o azul do danúbio
a música do licor
o alcance da garrafa
a altura da estante
a arrumação da cozinha
a avó em casa
a grandeza da janela
o cinza da areia
a imensidão do mar

O tema mítico em chave contemporânea talvez seja um melhor caminho de leitura para esses textos, uma forma de “provocar sentidos”, como disse durante a entrevista, de arejá-los em um mundo de palavras de ordem.

Penso agora na criança com água na linha da cintura, dividida entre o éter e a água, como um daqueles animais da zoologia fantástica de Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero, cujos atributos são o de “provocar espaços” e “criar silêncios”.

E nem falei dos Ulisses e sereias…

Estante
Natalia Barros. A insurreição da flor. São Paulo: Selo Demônio Negro, 2022.
Natalia Barros. Caligrafias. São José dos Campos: Ofício das Palavras, 2012.
Gaston Bachelard. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Marins Fontes, 1997 (1ª edição 1942). 
Gérard Genette. O Universo Reversível. In: Figuras. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972 (1ª edição 1966).
Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero. Manual de zoología fantástica. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1966 (1ª edição 1957). 

 

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