10/09/2024

Longe de padrões inatingíveis, influenciadoras da Baixada Santista superam a gordofobia

Por Renan da Paz em 10/09/2024 às 20:00

Reprodução/Instagram
Reprodução/Instagram

Olhar-se no espelho e gostar do que enxerga é um ato de autossuficiência que todos nós buscamos – mesmo inconscientemente. Fica mais desafiador a medida que imagens impostas dos corpos de outras pessoas, como influenciadoras e celebridades, influenciam essa percepção de aceitação.

É que a pressão para atender a esses padrões pode distorcer nossa autoimagem e afetar nossa autoestima. Segundo uma reportagem da British Broadcasting Corporation (BBC), o impacto das redes sociais na imagem corporal indica uma relação significativa entre o uso dessas plataformas e preocupações com a aparência.

Estudos, como uma revisão de 2016 que analisou 20 artigos, mostraram que atividades baseadas em fotos, como rolar o feed do Instagram, frequentemente intensificam pensamentos negativos sobre o próprio corpo, principalmente porque essas imagens muitas vezes mostram apenas o melhor lado das pessoas, por exemplo.

E quando falamos de ataques ao físico, falamos de “gordofobia”, cuja luta é celebrada nesta terça-feira (10) em alguns municípios. De acordo com a Academia Brasileira de Letras (ABL), o neologismo foi criado para indicar preconceito de pessoas que julgam o excesso de peso e a obesidade como um fator que mereça desprezo, ou seja, a aversão a pessoas gordas.

Mas é possível tangenciar o habitual. Há um lado entre os mais de 10 milhões de influenciadores brasileiros que zela pelo real; aquilo que todos nós realmente vivemos, sem filtros, com objetivo de mostrar realidade e se aproximar de um público que não gosta de padrões inalcançáveis, como as influenciadoras digitais da região, Evelyn Hermínio e Lís Ferreira.

A arte salva…

A praia-grandense Eve Hermínio, de 25 anos, como é carinhosamente conhecida, se tornou criadora de conteúdo involuntariamente, antes mesmo de existir essa denominação. “Eu só fui ter acesso às redes sociais na adolescência. Comecei me inteirando no Orkut, Facebook e Twitter e enxerguei nesses meios uma oportunidade de mostrar a minha arte”, relata.

Formada em Farmácia pela Universidade Santa Cecília (Unisanta), ela tem a escrita e a dança como outros grandes amores – expressões artísticas que já proporcionaram mais de 136 mil seguidores acumulados nas redes sociais. “Eu era de momentos: me sentia um pouco tímida às vezes e, em outras, poderia sentar e falar sobre a minha vida inteira com qualquer um. Então, o interesse pelo meio digital surgiu em mim”.

Acervo pessoal

Foi, então, que criou seu canal do YouTube em 2011. O primeiro vídeo? “O Mundo Dá Voltas: A Princesa Volturi”, uma espécie repercutida de fanfic (ficção criada por fãs baseada em elementos existentes da cultura pop), com personagens da saga Crepúsculo. Eve pôde não perceber, mas aquilo foi o primeiro passo para algo maior.

“Quando eu comecei a produzir conteúdo, não tinha inspiração, porque não acompanhava ninguém. Infelizmente, acho que eu teria sido melhor se tivesse uma base, mas comecei do nada e fui aprendendo com as pancadas”, relembra.

Algumas dessas ‘pancadas’ surgiram com o conteúdo atual de Eve, a dança com enfoque na cultura asiática. “Eu comecei a receber muito hate (comentários odiosos) por conta da minha aparência, primeiramente porque o K-pop vem de um padrão estético extremamente alto, o que não é comum em diversos países do mundo”, relata.

Mesmo chateada, a influenciadora não ficou em silêncio. Fazendo dos limões copos de limonada, transformou alguns dos comentários discriminatórios em temas de vídeos irônicos: ela dançava e, ao mesmo tempo, eram mostrados prints com insultos. Todos eles renderam milhares de curtidas e centenas de comentários.

Em um dos vídeos icônicos e ovacionados, ela escreve na legenda: “Certeza que tem muita gente que acha que postar vídeos nesse hype é vitimismo por LIKE em rede social, mas eu penso diferente. Se todo mundo que sofresse algum tipo de bullying pela internet transformasse isso em um ponto de coragem e fosse apoiado por outras pessoas, não teríamos seres mais encorajados e felizes?”

Para Eve, se tornou comum receber algumas críticas não construtivas, e talvez seja o preço do destaque.

“Infelizmente, se tornou normal esse cancelamento sem propósito. Então, costumo lidar de forma natural. São os comentários de pessoas amarguradas sobre outras sem conhecê-las, então não é um problema meu, e essa pessoa tem isso dentro dela. Não posso fazer algo contra isso, a não ser que seja um comentário extremamente malicioso e que eu sinta que precise tomar medidas cabíveis”, afirma a praia-grandense.

E o amor-próprio também!

Também foi despretensioso para a cubatense Lís Ferreira, de 32 anos, se estabelecer como influenciadora digital. Ela começou em 2016, compartilhando dicas com as amigas no próprio perfil, que na época, não era aberto ao público.

“Estava no Rio de Janeiro e, como morei lá durante alguns anos, queria mostrar as coisas para as minhas amigas daqui. Um certo dia, resolvi fazer achadinhos em uma loja, onde mostrei produtos que eu não encontrava na Baixada Santista”, relembra.

Apesar da timidez inicial, a partir daí, encontrou um talento que não sabia que tinha. “As pessoas falavam: ‘Você é a Lís, não é? Eu te reconheci… tal loja te repostou… eu vim aqui comprar a sua dica…’. Não sabiam quem eu era, mas conheciam a minha voz e meus bordões, e foi dando certo. Estou aí até hoje’, comenta.

Acervo pessoal

Na mesma época, Lís passou por uma situação desconfortável durante o horário de almoço do trabalho. “Era o meu primeiro dia como funcionária em um shopping do Rio de Janeiro. Fui uniformizada dar uma volta para conhecer o lugar até que ouvi ‘Nossa, como essa mulher desse tamanho tem trabalho e eu não?’. Eu fiquei sem reação e não consegui comer durante o restante do dia”.

Lís ainda detalha que não era considerada uma mulher gorda, mas uma mid size, termo utilizado para englobar pessoas que vestem manequim do 44 ao 48, não se enquadrando na categoria plus size ou nos padrões fit.

“Assim que aconteceu, eu fui para casa. As minhas amigas disseram para não me apegar, mas não consegui. Hoje, se tivesse acontecido, eu teria agido de outra forma, respondendo: ‘Eu tenho emprego e você não, justamente pela sua falta de capacidade de ver as pessoas felizes, independente dos corpos delas’”.

Quando recebe comentários inconvenientes sobre seu corpo, a resposta de Lís atualmente é a mais leve. “Eu rio porque realmente sou uma mulher gorda, só que aprendi a me amar, acima de qualquer coisa. Tenho saúde e, estando saudável, é o suficiente”, afirma Lís Ferreira.

Sempre que pode, ela questiona as seguidoras: “Você está bem de saúde?”; “Está acima do peso, mas você está bem de saúde?”; “Você não está se sentindo bem?”. Se for o caso, o incentivo é a academia e a dieta, tudo em busca da felicidade.

Visão nutricionista

Muito além do olhômetro, existem vários parâmetros para calcular a equação de peso, de acordo com Angela Ilha, coordenadora do curso de Nutrição da Unisanta.

Existem equipamentos como bioimpedância – um método utilizado para estimar a composição corporal, medindo a resistência elétrica dos tecidos do corpo – e adipômetro – que vê percentual de gordura e massa muscular, mas um parâmetro mais básico é o Índice de Massa Corporal (IMC).

“Nele, nós temos métricas sugeridas pela literatura de adequação, como baixo peso, eutrofia – que é o adequado –, sobrepeso, obesidade grau 1, grau 2 e até grau 3. A métrica usada para o IMC é o peso dividido pela altura ao quadrado e, com base nessa fórmula, a pessoa que está fora da adequação de peso consegue identificar, por exemplo”, explica Angela.

Arte: Renan da Paz

Para saber se o índice é positivo ou negativo, são considerados fatores de idade e gênero.

“Entretanto, isso é apenas uma métrica. Nós não trabalhamos diretamente com o peso ideal com os pacientes porque, muitas vezes, existem pessoas que estão muito longe do seu peso ideal. A gente tem esse cálculo apenas como uma prática para saber ‘qual seria o peso ideal’. O que é utilizado na rotina clínica é o peso alvo”, explica a nutricionista.

Esse peso alvo seria o peso a ser trabalhado com o indivíduo, negociado dentre seus objetivos. “Se tem alguém com uma obesidade grau 3 e ele perder, por exemplo, 10% do seu peso, a gente já vai estar ganhando saúde. Talvez ele esteja muito longe do seu peso ideal, mas nós já vamos melhorar muito em relação à saúde”.

Angela Ilha reconhece que a cobrança pela imagem perfeita – com filtros e inatingível – está cada vez maior. Portanto, na parte clínica, segundo ela, os nutricionistas tentam trabalhar as escolhas saudáveis.

“Nós tentamos ajudá-los a programar suas semanas. É importante fazer com que a pessoa não troque uma alimentação por apenas um composto de suplemento, como preparações prontas, mas trazer a pessoa para uma relação saudável com a comida, e não mistificar que é proibido. Isso não pode de jeito nenhum e nada é proibido. O que interfere é a frequência de consumo”, afirma.

Se não há uma boa relação com a comida, então há uma má relação com o corpo, o que pode ocasionar em transtornos alimentares. “Eles estão muito presentes hoje e decorrem de dietas drásticas, de restrições muito severas ou de cobranças muito grandes para se adequar a um padrão. Basta a gente adequar a alimentação dentro de uma rotina, em consumir alimentos, preparar alimentos e evitar os ultraprocessados. Na rotina, já vamos ter ganhos enormes em relação à saúde”, finaliza.

Visão psicológica

A desvalorização, estigmatização e hostilização contra pessoas gordas pode causar sérios impactos na saúde mental, de acordo com a professora e psicóloga Mariane Gama. Entre eles, os mais comuns são:

Baixa autoestima – A constante desvalorização pode levar a uma percepção negativa de si mesmo, neste sentido ter sua autopercepção afetada por pensamentos disfuncionais.

Ansiedade e depressão – O estigma e a discriminação podem desencadear ou agravar transtornos de ansiedade e depressão.

Isolamento social – A vergonha e o medo de julgamento podem levar ao isolamento social, dificultando a formação de relacionamentos saudáveis e baixa habilidade social.

Transtornos alimentares – A pressão para se conformar a padrões de beleza pode resultar em comportamentos alimentares desordenados, como anorexia ou bulimia, compulsão alimentar e distúrbios de imagem.

Para a psicóloga, porém, existem estratégias para lidar com a atitude discriminatória.

“A psicoterapia é uma ferramenta valiosa, pois auxilia no desenvolvimento de estratégias de enfrentamento e na melhoria da autoimagem. Ao buscar apoio psicológico, é possível ressignificar visões negativas que se tem de si mesmo, do outro e do mundo, promovendo um processo de autoconhecimento e valorização pessoal”, afirma.

Além disso, a educação e conscientização servem como ferramentas fundamentais para enfrentar a gordofobia. “Informar-se sobre os impactos desse preconceito ajuda a reconhecer e combater atitudes discriminatórias, tanto internas quanto externas”.

Enfim, a psicoeducação, que pode ser abordada durante as sessões de terapia ou em outros contextos, também contribui para a construção de uma rede de apoio sólida. “Praticar a autocompaixão e cercar-se de pessoas que oferecem suporte emocional são passos importantes para fortalecer a autoestima e manter um senso saudável de valor pessoal”, finaliza.

Visão judiciária

Atualmente, não há uma legislação específica que trate diretamente da gordofobia no Brasil, mas isso não significa que vítimas de discriminação não possam buscar justiça.

A advogada Juliana Martins esclarece que, embora a prática da gordofobia não tenha uma lei dedicada, a vítima pode recorrer ao sistema jurídico para responsabilizar o autor das ofensas.

“No âmbito criminal, as ofensas relacionadas à gordofobia podem ser enquadradas como injúria, conforme o artigo 140 do Código Penal, que prevê penas de detenção de um a seis meses, ou multa. Caso a vítima tenha uma condição considerada deficiência, como obesidade mórbida, a pena é ainda mais severa, podendo variar de um a três anos de reclusão, além de multa”, explica.

Além disso, se a ofensa for cometida por meio das redes sociais, a pena pode ser triplicada. Isso destaca a gravidade das sanções aplicáveis a comportamentos discriminatórios online, refletindo a necessidade de um ambiente virtual mais respeitoso.

A advogada salienta que a ação penal para crimes de gordofobia deve ser movida diretamente pela vítima através de uma queixa-crime ao juiz competente, sem a intervenção do Ministério Público, uma vez que se trata de um crime de ação penal privada.

“Na esfera cível, a gordofobia pode gerar a possibilidade de indenização por danos morais. A vítima deve entrar com uma ação específica para discutir e reivindicar compensações pelos constrangimentos sofridos”.

Já no contexto trabalhista, a situação é igualmente séria. “Empregados que enfrentam discriminação devido ao seu peso têm o direito de buscar indenizações por danos morais e até mesmo solicitar a rescisão indireta do contrato de trabalho, caso a situação de discriminação seja insustentável”, afirma.

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