'Tremembé': Quem é Ullisses Campbell, que conquistou o true crime ao ouvir criminosos
Por Adrielly Souza/Folhapress em 26/11/2025 às 14:12
O fenômeno “Tremembé“, cuja segunda temporada já foi anunciada, colocou holofotes sobre um autor que o público do crime real já conhecia bem: Ullisses Campbell, 49, paraense, jornalista desde os 19 anos, roteirista, e autor de livros que provocaram debates que ultrapassam o noticiário policial.
Sua trajetória começou muito antes do streaming. Décadas atrás, ainda em Belém, ele assinava reportagens sobre assuntos como prostituição de luxo, exploração de crianças em carvoarias e o massacre de Eldorado do Carajás.
Ali começou um período que ele descreve como “o jornalismo burocrático”. Cobria saúde, educação e ciência, temas importantes, mas que o empolgavam. A virada veio quando conseguiu transferência para a sucursal do Correio Braziliense em São Paulo, em 2008.
Sua primeira cobertura criminal foi também uma das maiores daquele ano: o Caso Nardoni. Ele seguiu o processo do começo ao fim e fez mais de 100 matérias sobre o assunto. Foi ali que entendeu, pela primeira vez, que o país tinha sede por histórias criminais contadas com mais profundidade.
Quando o jornal decidiu fechar a sucursal de São Paulo, em 2012, abriu-se a porta de entrada para o “grande crime” que viria depois. Convidado para a recém-criada Veja Brasília, ele começou a assinar perfis e reportagens de impacto.
Em 2014, entrou pela primeira vez na penitenciária de Tremembé: conseguiu autorização para entrevistar o ex-senador Luiz Estevão. A matéria virou capa e chamou atenção da redação nacional da revista.
Suzane Von Richthofen
Em 2016, Ullisses Campbell recebeu a notícia de que a direção da revista queria mais textos sobre Suzane von Richthofen. Ele estranhou a escolha, mas ouviu que precisava dar um jeito.
“Perguntei por que agora, já que não era uma data marcante, mas a ordem foi clara: ‘Te vira’. Eu era o repórter que sempre conseguia tudo”, diz ao F5. A primeira reportagem que fez sobre Suzane -acompanhando a sua primeira saída temporária- acabou se tornando, segundo ele, “a semente do livro”.
A virada definitiva veio meses depois, quando começaram a planejar uma coleção de biografias de presos da Lava Jato. Convidado para escrever sobre Marcelo Odebrecht, Campbell não hesitou em recusar.
“Eu não tinha o menor interesse. O personagem não me atraía nem um pouco”, explica. Foi então que decidiu arriscar: “Olhei para meu chefe e disse: ‘Eu quero a biografia da Suzane'”, mesmo com a então presidiária se recusando a falar com ele -e foi justamente essa recusa que o empurrou para um método que rege a sua carreira.
“Quando a pessoa não quer falar, eu vou para o entorno”, diz Campbell. Ele começou a procurar colegas de cela da detenta durante as saidinhas temporárias, mas elas raramente tinham tempo -viviam viajando dias até conseguir voltar para casa.
Da dificuldade nasceu a estratégia: ele alugou uma van e passou a levar presas beneficiadas com a saidinha até suas cidades de origem. “Eu virava o motorista delas”, conta. “Rodava o estado inteiro deixando cada uma em sua cidade. Passávamos o dia juntos, contando histórias, ouvindo música. E é nesse intervalo que as pessoas falam o que não falariam diante de um gravador.”
Essa convivência diária permitiu que ele acessasse detalhes que nenhum outro jornalista tinha. A van virou símbolo entre as detentas. “Eu era quase um ‘tio da van’. E foi assim que descobri tudo o que precisava para o livro ‘Suzane – Assassina e Manipuladora’.”
A publicação foi um sucesso mesmo enfrentando turbulência na Justiça. Suzane entrou na Justiça e conseguiu censurá-lo por 35 dias. A liberação veio após uma liminar do STF. “A alegação era que eu feria a honra dela. Mas quem destruiu essa honra foi ela mesma, quando abriu a porta de casa para os assassinos entrarem”, diz.
Carreira no True Crime
Durante a noite de autógrafos, no Conjunto Nacional, um novo convite surgiu: o advogado de Elize Matsunaga perguntou quando seria “a vez da cliente dele”. Veio o segundo livro. O terceiro seria Flordelis, que só saiu quando todo o processo judicial estava concluído.
A essa altura, leitores começaram a cobrar: “E os homens?”. Ele escreveu sobre Francisco de Assis, conhecido como o Maníaco do Parque. O sucesso desse e dos outros livros, somado às participações em programas sobre crimes, acabou consolidando Campbell como uma das principais referências do true crime no Brasil.
A ponte para o audiovisual viria logo depois. A roteirista e executiva Julia Priolli, da Amazon, percebeu que os mesmos personagens apareciam em livros diferentes. Sandrão, por exemplo, estava presente tanto na história de Suzane quanto na de Elize. Ela enxergou ali um universo interligado -e nascia “Tremembé”.
Ullisses entrou para a sala de roteiro desde o início. Não só como autor adaptado, mas como pesquisador e responsável por validar juridicamente cada detalhe da série. Ele também já havia investido em cursos de roteiro para transformar sua escrita em algo mais visual, o que facilitou a adaptação.
O caso da calcinha
Um dos exemplos mais emblemáticos de sua apuração aparece nos bastidores do caso da “calcinha do Christian”, um episódio central da história. Quando Christian Cravinhos negou ter tido um romance com outro homem, Ullisses decidiu comprovar. Encontrou o ex-parceiro, Duda, que afirmou ter guardado cartas antigas. Na casa da mãe dele, acharam um baú com tudo -inclusive a calcinha usada na relação. Prova irrefutável, na sua visão.
“Você não imagina o que eu já fiz para comprovar um detalhe”, diz, rindo. “A diferença entre verdade e ficção é uma calcinha.”
Hoje, além da segunda temporada de “Tremembé”, Ullisses trabalha em um documentário e prepara o volume dois da série de livros. Ele diz que, depois de tantos anos perseguindo histórias, agora são elas que o procuram.
E continua fiel ao método que o tornou reconhecido: escutar sem pressa, conviver com quem ninguém quer ouvir e ir atrás do detalhe que muda tudo.
“No fim das contas, compreender criminosos não é desculpá-los”, afirma. “É tentar entender como alguém chega ao pior de si. E essa é a pergunta que move meu trabalho até hoje.”