Stephen King mostra por que tem sido levado mais a sério em novos contos
Por André Araújo/Folhapress em 13/07/2024 às 14:02
A obra de Stephen King vem recebendo uma espécie de reavaliação crítica nos últimos anos, e grande parte dos motivos para tanto estão presentes em sua nova coletânea de contos, “Mais Sombrio”.
Por um período, a obra de King foi dispensada como mera literatura de entretenimento, muito devido a um conjunto de adaptações cinematográficas apelativas, mas também devido a qualidade desigual entre seus numerosos livros.
Entretanto, a geração contemporânea de autores e autoras de horror, em especial de origem latino-americana como Mariana Enríquez e Mónica Ojeda, não se furta em citar King como influência inescapável, não apenas do ponto de vista de sua presença massiva no mercado, mas também por suas capacidades literárias, seus temas e seu modo específico de usar o gênero como ferramenta de crítica social e investigação psicológica.
As 12 histórias presentes em “Mais Sombrio” não deixam dúvidas quanto a isso. Composta por dez contos curtos e duas longas novelas (maiores que muitos romances publicados nos últimos tempos), “Mais Sombrio” também peca por uma certa irregularidade característica de King, mas no conjunto compõe uma poderosa e revigorante leitura da sociedade americana, com todas suas mazelas, contradições e impasses.
Os temas clássicos de King estão presentes aqui, na forma de histórias de fantasmas, assassinos, cientistas malucos, invasões alienígenas e criaturas monstruosas: a crítica ao individualismo que produz a monstruosidade da solidão e do isolamento; a violência que irrompe subitamente, seja num ato de loucura, seja pela frieza de um psicopata; a loucura, cujas raízes podem ser traçadas pela imersão em uma realidade brutal ou pela história sangrenta dos Estados Unidos que se perpetua nos indivíduos.
A esses temas, King também adiciona reflexões sobre o envelhecimento, um dos grandes temas da coletânea, presente em histórias como “Cascavéis” –uma espécie de continuação independente do romance “Cujo”, grande destaque do livro.
Em quase cem páginas, King tece uma história de fantasmas que se passa durante a pandemia de Covid nos pântanos da Flórida, que trata com doses iguais de doçura e violência a persistência dos traumas do passado em uma comunidade isolada, com personagens já com mais de 70 anos.
A doença e a degradação corporal aparecem em diversos contos e parece se impor devido ao engajamento de King com a pandemia. É notável como o autor é atento para os efeitos sociais e individuais que ela produziu nos Estados Unidos, em especial no sentido do fraturamento do coletivo e das relações.
Nunca estivemos tão sozinhos, parece sugerir King, e por isso mesmo nunca estivemos tão fragilizados perante a violência da realidade. Em “Tela Vermelha”, conto clássico de inquérito policial, o assassino deixa de ser um psicopata e se torna um conspiracionista de internet, que assassina sua esposa acreditando que ela é uma invasora alienígena.
Ao escrever todos os relatos sobrenaturais em primeira pessoa, King alude ao fato de que estamos todos à deriva em nossas próprias fantasias. O sobrenatural aparece menos como um dado da realidade e mais como forma possível de interpretação para um mundo cada vez mais complexo e afastado de soluções reais e palpáveis.
Ao investir na dúvida, e não na exposição, “Mais Sombrio” acena a uma tradição mais realista da literatura americana, em especial ao chamado gótico sulista, de Flannery O´Connor e Cormac McCarthy, citados nominalmente.
De forma quase didática, no conto “Os Sonhadores”, um cientista com tintas lovecraftianas decide investigar as profundezas do sonho de pacientes. O que emerge desse experimento é a versão de King do substrato sombrio do sonho americano que, tal como um vírus, contamina tudo a seu redor.