'Permanência em Lugar Nenhum' desafia a era da aceleração do mundo
Por Sérgio Alpendre/ Folha Press em 20/10/2024 às 11:29
Os tempos estão mais para choques calculados em filmes de Ruben Östlund ou Yorgos Lanthimos, mas convém ajustar nosso ritmo para um outro tipo de cinema que a Mostra pode proporcionar.
“Permanência em Lugar Nenhum”, longa mais recente de Tsai Ming-Liang, nos convida, mais uma vez, a experimentar um outro tempo narrativo, ou não narrativo: o tempo da contemplação.
O longa é o décimo de uma série conhecida como “Walker”, iniciada em 2012, que acompanha o ator-fetiche do cineasta, Lee Kang-Sheng, caminhando muito lentamente –mas muito lentamente mesmo, só vendo para acreditar– por lugares do mundo, com os pés descalços, a cabeça raspada e vestindo um manto vermelho.
Quem conhece o cinema de Tsai, sabe que o cuidado com a composição dos quadros é uma constante. Logo, ver o monge atravessando esses quadros brilhantemente construídos é um espetáculo visual que compensa o sacrifício de abdicar da agitação dos tempos atuais.
Os primeiros filmes da série são todos curtas. A partir do sexto, “Jornada ao Oeste”, de 2014, Tsai busca uma maior duração. Ainda timidamente, 56 minutos, mas era um sinal.
O anterior, “Where”, de 2022, tem 91 minutos, sendo o maior de toda a série. Este mais recente tem 79 minutos: um convite à contemplação semelhante ao de uma videoinstalação.
Se nos filmes anteriores da série vemos um ensaio sobre o tempo e o espaço, mas também sobre a incidência de luz nesse espaço, em “Permanência em Lugar Nenhum” há uma curiosa mudança, ao menos no início: a composição não parece tão burilada.
Talvez a classificação do filme como um documentário seja um despiste. Coerentemente, no início, vemos uma imagem mais casual, sem o rigor com que estamos habituados em seus trabalhos.
A câmera agora está frequentemente mais próxima do monge, alternando as imagens dele na natureza com as de outro ator, Anong Houngheuangsy, com quem Lee Kang-Sheng contracena em “Dias”, de 2020, e no já mencionado “Where”.
Como resultado dessa alternância, o tempo já não é mais tão dilatado, tornando-se um pouco mais palatável. Ou menos insuportável, pensando nos mais apressados.
Após 15 minutos, reconhecemos um dos cenários: o monge agora leva seu lento caminhar para Washington, capital dos Estados Unidos, na terra do cinema de ação de ritmo aceleradíssimo, o convite para a imersão em um outro tempo. Interessante provocação.
A imagem distante do obelisco, com o monge atravessando o quadro num ponto intermediário entre a câmera e o monumento, só não é mais impactante porque Tsai corta antes que ele atravesse todo o caminho da esquerda para a direita.
Quando o monge chega no reflexo do obelisco no lençol de água por trás de seu corpo, bem no meio do quadro de simetria espantosa, acontece o corte. Em outros momentos, o corte também surge antes do que aprendemos a esperar por seus filmes anteriores. Tsai está menos radical. Ainda assim, é radical o bastante.
É incrível que mesmo no décimo filme da série sejamos atingidos pelo humor que se desprende dessa figura desafiadora. Vemos que as pessoas o observam entre a incredulidade e a curiosidade, e é esse contraste que pode nos levar ao riso.
Para Tsai, não importa muito se o público vai aderir ou não a essa experiência. Importa que os que aderirem fiquem com ele até o fim. Nesse sentido, o filme trafega por uma área limítrofe entre a sétima arte e outras artes visuais. Por isso vemos sempre espaços artísticos em seus filmes.
Seu cinema frequentemente se confunde com as instalações em vídeo que ele realiza pelo mundo. Um dos últimos filmes que realizou, “Wandering”, de 2021, mostra uma atriz que se desloca por vários espaços, todos exibindo trechos da série do andarilho. Em um dos espaços que entra, está o próprio Tsai Ming-Liang, observando as imagens criadas anteriormente.
No final dos anos 1990, começo dos anos 2000, o cineasta era um dos mais celebrados no circuito de festivais. Filmes como “Vive L’Amour”, 1994, “O Rio”, 1997, “O Buraco”, 1998, “Que Horas São Aí?”, 2001, e “Adeus Dragon Inn”, 2003, passavam com grande alarde, encantando um grupo considerável de entusiastas.
Atualmente, Tsai não é mais tão badalado. Mas seus filmes proporcionam experiências muito superiores aos dos diretores que procuram chocar a qualquer custo. Talvez por isso seu cinema seja ainda mais importante hoje.
Permanência em Lugar Nenhum
- Quando: 21/10, às 17h20, no Cinesystem Frei Caneca 1; 23/10, às 17h, no Circuito SPCine Lima Barreto – CCSP; 26/10, às 18h, no Sato Cinema; 28/10, às 16h50, Cinesesc
- Onde: Mostra de SP
- Classificação: 10 anos
- Elenco: Lee Kang-Sheng, Anong Houngheuangsy
- Produção: EUA e Taiwan, 2024
- Direção: Tsai Ming-Liang
- Avaliação: Muito Bom