28/03/2024

'Outono de Carne Estranha' é romance de poesia rara, mas diluída

Por Diogo Bercito/Folhapress em 28/03/2024 às 10:57

Evangelista Rocha/Divulgação
Evangelista Rocha/Divulgação

Uma lama espessa cobre todas as coisas em Serra Pelada, no Pará. Milhares de garimpeiros chafurdam um em cima do outro em busca de ouro. Despencam de escadas tão precárias que são chamadas de “adeus-mamãe” –seria o último pensamento de quem cai em direção à morte.

O escritor paraense Airton Souza, de 42 anos, redime esse cenário desalentador transformando-o em literatura. Ambientou seu romance “Outono de Carne Estranha” nesse que foi, nos anos 1980, o maior garimpo a céu aberto do mundo. Colocou justo ali a história de amor de dois homens.

O texto venceu no ano passado o Prêmio Sesc de Literatura, conhecido por revelar novos talentos. Souza já era calejado, porém: o professor lançou 47 livros e venceu diversos outros prêmios.

A editora Record costumava publicar o vencedor do troféu, fruto de uma parceria de duas décadas com o Sesc, e foi o que aconteceu com “Outono de Carne Estranha”.

Mas em novembro, Souza leu um trecho do seu texto durante a Flip. A leitura incomodou diretores do Sesc, porque o romance já começa com uma explícita –e longa– descrição de sexo entre os garimpeiros Manel e Zuza. As palavras “pica” e “cu” estão na primeiríssima página do texto.

As relações azedaram entre a Record e o Sesc. A editora rompeu a parceria com o prêmio, sugerindo que, por homofobia, o Sesc não divulgou o romance o bastante. A polêmica, é claro, trouxe o texto para o primeiro plano. Foi o que aconteceu também com “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, alvo de censura em diversos estados.

Em “Outono de Carne Estranha”, Souza não fala só do amor de Manel e Zuza. Apresenta, também, a história do garimpo, e foi bastante feliz na escolha desse cenário infeliz. O formigueiro humano de Serra Pelada oferece imagens extremas da condição humana. É o tipo de material que costuma render uma boa e impactante literatura.

O tom do livro, de crítica social, às vezes lembra “Cacau”, que Jorge Amado publicou em 1933, e a linguagem é de uma poesia incomum na prosa contemporânea.

Souza escreve, por exemplo, que o garimpeiro Manel, enquanto gemia, “sabia que não tinha como manusear dentro da boca todos os vocábulos que o conduziriam ao desenho de uma varanda”. Há passagens belíssimas, do tipo que faz o leitor fechar o livro e pensar.

Nem todas as metáforas de “Outono de Carne Estranha”, porém, são fáceis de entender. Fica a impressão de que Souza quer expandir o significado das palavras; mas, às vezes, acaba rompendo-as. O leitor tem que pelejar para transformar as frases em ideias ou em sensações claras.

Um trecho diz que Manel se sentia “como se afagasse um comboio de libélulas com cheiro de alfazema”. Em outro, que “trazia nas dobras dos joelhos a habilidade de regressar da morte sem a necessidade de sentir o cheiro das bromélias”. Depois, que alguém parecia “fazer com que Deus pudesse entender mais de ossos do que da piedade dos pirilampos”.

Outra coisa delicada no estilo é a repetição de palavras. É provável que Souza quisesse usar e reusar o vocabulário do garimpo para transmitir a monotonia asfixiante da vida dos personagens, que pensam o tempo todo na mesmíssima coisa. Mas há um sem-fim de menções a coisas como “adeus-mamãe”, “bate-pau”, “melechete” e “bamburro”, de um jeito que afasta o leitor, em vez de produzir empatia.

Há questões no enredo, também. O romance começa com força, na descrição da relação sexual de dois homens que, com um amor físico, conseguem transcender a agrura do cotidiano. Souza cria passagens tocantes, como quando um deles pensa que queria ter cabelos longos para poder por fim “sentir as mãos de seu homem entrelaçadas nos fios”.

A história vai perdendo força, entretanto, com a aparição dos outros personagens. Há um terceiro protagonista, um padre, cuja história não é tão bem desenvolvida quanto a dos garimpeiros. O antagonista, conhecido como marechal, não tem muita profundidade.

Com tudo isso, o amor –e o sexo– de Manel e Zuza acabam diluídos entre belas metáforas e palavras repetidas.

Outono de Carne Estranha

Preço: R$ 64,90 (176 págs.)

Autoria: Airton Souza

Editora: Record

Avaliação: Bom

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