Nando Reis diz que renasceu com sobriedade ao lançar seu 1º disco feito sem drogas
Por Lucas Brêda/Folhapress em 12/08/2024 às 10:56
Em 2016, Nando Reis chegou ao fundo do poço. Estava em Seattle para mixar seu álbum “Jardim Pomar”, lançado naquele ano. Distante da então ex, agora atual mulher, Vânia, e dos filhos, e sem cocaína, ele se afundou no álcool -eram esses seus dois principais vícios- e planejou tirar a própria vida. No meio do processo, desistiu.
Baixista e vocalista na fase clássica dos Titãs, autor de dezenas de sucessos já incrustados no cancioneiro popular brasileiro, ele ligou para o psiquiatra e pediu para ser internado. Passou a frequentar uma unidade dos Alcoólicos Anônimos, retomou o contato com Vânia e os shows e entrou num processo de sobriedade que dura até hoje.
O novo projeto de Reis, “Uma Estrela Misteriosa”, que inclui quatro álbuns de músicas inéditas, lançado a conta-gotas desde o mês passado, é resultado dessas experiências. “Foi ali que me deparei com um esgotamento daquela vida de antes”, ele diz. “Essa mudança de hábitos, quando parei de beber e de usar [drogas], tem uma conotação muito forte para mim, como um renascimento, uma opção pela vida.”
No ano passado, em especial no podcast “Lugar de Sonho” e numa matéria publicada pela revista Piauí, ambos em primeira pessoa, Reis falou abertamente sobre sua relação com as drogas -descrevendo, inclusive, como elas acompanhavam seu processo de criação. Em “Uma Estrela Misteriosa”, ele viveu uma situação que desconhecia, a de criar um álbum estando sóbrio, após 30 ou 40 anos .
“É comum, entre quem é adicto, e usa a substância com essa finalidade, acreditar que sem isso não se dá [para compor], e isso é uma mentira”, ele diz. “A criação tem um lado que parece meio mágico, você é cooptado por um estado de transcendência que é semelhante à embriaguez ou de viagem. Mas, por mais desinibidor que qualquer fagulha fosse, o resultado final era submetido a uma avaliação crítica e rigorosa que sempre tive.”
Reis diz que não faz crônica nem autobiografia, e que seu método de composição se dá em torno da organização dos próprios pensamentos e emoções -em suas palavras, a “acumulação de tudo que vem na minha própria história”. No novo álbum, ele faz uma declaração singela e testemunhal a Vânia em “Estuário”, caso de amor que começou na escola e, entre idas e vindas, dura até hoje.
Os ouvidos mais atentos vão pescar referências à dependência em drogas e o processo de sobriedade, mas há canções explícitas sobre isso. Uma delas é “Des-mente”, em que diz “quero cheirar, quero fumar, quero beber”, antes de a letra dar uma reviravolta -“não quero usar, não quero voltar, não quero morrer”.
Em “Daqui Por Diante”, música que fez de maneira despretensiosa para cantar no Natal para a família, Reis celebra a nova fase e pede desculpas falando diretamente à mulher, filhos e neto. Diz que “dói demais me lembrar da insânia” e “certas coisas eu não posso consertar”, mas “depois do horror do tsunami vem a bonança”.
Mesmo para Nando Reis, um dos autores mais relevantes da música contemporânea brasileira, compositor de sucessos em sua voz ou nas de Cássia Eller, Samuel Rosa, Marisa Monte e tantos outros, criar não é algo simples. Ele diz que precisa atravessar um período de insegurança antes de conseguir ordenar os sons e palavras que se tornarão canção.
“É uma angústia por temer não só não conseguir compor, mas fazer algo relevante, que me agrade. É algo existencial, me acompanha a vida inteira”, diz. “E depende de uma disposição de conviver com isso, enfrentar e ultrapassar. Num mar cheio de ondas, para pegar um jacaré, você tem que passar a rebentação -ela dá medo, te afoga, mas se você não passar, não sabe se vai ter uma onda boa para pegar.”
Em “Uma Estrela Misteriosa”, ele enfrentou as rebentações quando Barrett Martin, ex-baterista do Screaming Trees, pediu que ele fizesse duas músicas para serem trilha de um documentário. A coisa fluiu tão bem que o ex-Titãs não parou mais de compor e gravar sob produção do americano -entre novas criações e o resgate de rascunhos e esboços antigos, ele foi criando até chegar nas 26 inéditas que integram o novo trabalho.
Sonoramente, o disco traz arranjos de orquestra e de sopro, cavaquinho e cuíca, mas se encaixa na estética desenvolvida pelo músico em sua carreira solo desde os anos 1990 -uma mistura peculiar de rock e MPB, de Neil Young a Gilberto Gil. A principal novidade é a contribuição do americano Peter Buck, do R.E.M., cuja guitarra se soma a de Reis, num encontro que estimulou ainda mais o brasileiro a escrever.
“É a minha linguagem”, ele diz. “Acho que são as canções que definem meu conceito, aquilo que busco como originalidade. O que me interessa é a singularidade de cada canção. O que as faz únicas é a forma de organização, as melodias e acordes. Em termos de harmonia, sou um compositor rudimentar, não tem sofisticação. É em outro lugar que se dá a minha sofisticação.”
Na feitura do disco quádruplo, além da banda base com Barett na bateria e Buck na guitarra, ele também utilizou bases gravadas com diferentes propósitos por ícones da cena roqueira de Seattle. São eles Mike McCready, guitarrista, e Matt Cameron, baterista, ambos do Pearl Jam, Duff McKagan, baixista do Guns N’ Roses, e Krist Novoselic, ex-baixista do Nirvana.
A relação com a cidade americana, conhecida como a capital do grunge, vem de 1993, quando os Titãs gravaram o álbum “Titanomaquia”. Desde então, Reis foi desenvolvendo uma amizade com Barrett, Buck e Jack Endino -este, produtor do primeiro álbum do Nirvana, além do trabalho com o brasileiro e sua ex-banda.
Reis lembra que fazer aquele disco há mais de 30 anos foi um tanto frustrante. “Eu estava muito presente, mas quase nenhuma das minhas ideias foi usada”, diz. “O trabalho nesse álbum foi muito intenso, houve muita conversa na recusa dessas ideias. Inclusive, acho que foi nessa minha argumentação que se estabeleceu uma relação com o Jack Endino.”
Ele cita outros dois discos -“Õ Blésq Blom”, de 1989, e “Volume Dois”, de 1998- como obras da banda que o frustraram. “Isso tem um grau de subjetividade, de gosto”, diz. “Talvez tenha a ver com uma dificuldade no embate pessoal, de me sentir muito contrariado e contestado. Uma batalha, um sofrimento, que não me agrada.”
Por outro lado, Reis enumera álbuns feitos em ambientes de maior fluência, uma “magia perceptível para quem esteve no estúdio”. Entre eles estão “Jesus Não Tem Dentes”, dos Titãs, de 1987, “Com Você…”, que ele produziu para Cássia Eller em 1999, e outros três discos solo -“Para Quando o Arco Íris”, de 1995, “A Letra A”, de 2003, e “Sei”, de 2012. A essa lista, acrescenta o novo “Uma Estrela Misteriosa”.
Reis saiu dos Titãs em 2002, depois de “As Dez Mais”, de 1999, que hoje chama de “meio irrelevante”, e “A Melhor Banda de Todos os Tempos da Última Semana”, de 2001. Àquela altura, ele já tinha iniciado a carreira solo e havia acabado de perder dois grandes amigos -o guitarrista Marcelo Fromer, dos Titãs, e Cássia Eller, sua grande parceira.
Dali em diante, viveu um período de sete anos em que “despirocou”. “Saí da banda, onde havia uma espécie de amarra, e me separei, estava solto e era jovem”, afirma. “Usei muita droga. Estava feliz e excitado com a possibilidade de me dedicar ao meu trabalho, à liberdade. Vivi com o pé no acelerador.”
O compositor diz que não foi desleixado na produção dos discos dessa fase, na maioria cheios de sucessos, mas não se orgulha do desempenho no palco. “Fui muito relapso nas minhas apresentações ao vivo, tem uma parte que é muito ruim. Acho isso horrível, certo? Prefiro nem falar.”
No ano passado, ele voltou aos Titãs com outros ex-integrantes para uma extensa turnê de reunião que lotou estádios e festivais ao redor do país. O repertório concentrou a fase clássica do grupo, entre os anos 1980 e 1990, esteticamente diversa, com influências que iam da new wave ao reggae, e uma veia punk antiautoridade e socialmente consciente.
“Aquelas músicas nunca deixaram de fazer sentido”, diz. “Independente do contexto em que elas estavam inseridas, há um grau de abertura na interpretação -tanto que algumas foram usadas pela extrema-direita. Por exemplo, ‘Bichos Escrotos’ na época da Lava Jato, e ‘Desordem’, em vídeos bolsonaristas.”
A turnê, no pós-Bolsonaro, ele diz, foi permeada por uma espécie de desafogo. “Fui muito atacado, caluniado, vítima de fake news. Mas a gente se manteve coerente. Foi a oportunidade de reiterar o que sempre fomos, e delinear as semelhanças dos momentos políticos e sociais -o pós-ditadura e o pós-Bolsonaro. Essa direita quer achatar as liberdades individuais e a diversidade e, nesse sentido, pensamos o oposto, defendemos a real liberdade.”
Reis lembra que a consciência política vem desde a formação da banda, no começo dos anos 1980, no colégio Equipe, onde os integrantes se conheceram. A escola de classe média de São Paulo, ele diz, era formada por “professores de esquerda, que lutaram, foram perseguidos e torturados”.
“Mas era só ver ao redor para perceber as coisas inaceitáveis que aconteciam no Brasil e no mundo”, diz. “E falo isso porque sempre me mantive distante de uma certa militância, de movimentos estudantis. Sempre fui artista. É engraçado porque no Equipe a gente era chamado de alienado, porra-louca, bicho grilo. Sempre tive interesse por pessoas com pensamento próprio. Nunca fui de partido, não sou petista.”
Nos shows de reunião dos Titãs, Reis incluiu o nome de Bolsonaro na música “Nome aos Bois”, em que cita pelo nome ditadores, tiranos e personalidades que desaprova. É uma lista que vai de Hitler a Borba Gato, e inclui gente de esquerda como Josef Stálin.
E, para ele, a longevidade desse repertório dos Titãs transcende questões sociais. “Se não houvesse os quatro anos daquele desastre, as músicas teriam seu lugar e sua força. Há uma qualidade estética e musical indiscutível. Os arranjos são criativos, originais e poderosos. Éramos oito, e tem a ver com o jeito cada um, com as suas predileções e influências impactando de formas diferentes. E daí o resultado é caleidoscópico.”
Com “Uma Estrela Misteriosa”, Nando Reis fará uma turnê com 25 datas -outras devem ser anunciadas nos próximos meses. A série de shows começa em 20 de setembro, em Macapá, e vai até 22 de dezembro, em Campinas. Os ingressos já estão à venda no seu site.