Humor foi vilanizado no Brasil, diz criador do Porta dos Fundos, que estreia peça
Por Matheus Rocha/Folhapress em 19/09/2024 às 11:03
Vez por outra, o ator Antonio Tabet recebe a continência de policiais militares ao andar pelas ruas do Rio de Janeiro. No entanto, a deferência não é exatamente voltada ao artista, mas sim ao Peçanha, personagem que caiu nas graças do público com seu jeito aparvalhado, comentários politicamente incorretos e por um certo pendor à corrupção.
O PM surgiu há 12 anos no Youtube em “CSI: Nova Iguaçu”, sátira da série americana de investigação policial. Depois, migrou para o Porta dos Fundos, produtora de vídeos de comédia que Tabet fundou ao lado de Fábio Porchat, Gregorio Duvivier, João Vicente de Castro e Ian SBF. Neste sábado (21), o personagem chega a São Paulo na peça “Protocolo de Segurança”, que estreia no Teatro Gazeta após uma temporada no Rio.
No espetáculo, com direção de Daniel Nascimento, Peçanha é contratado para passar instruções de segurança a uma plateia antes de uma montagem de “Hamlet”.
Ocorre que o ator atrasa e o PM se vê obrigado a entreter o público com causos sobre a carreira e reflexões sobre o Brasil. Muitas dessas opiniões, inclusive, são repletas de preconceito. Como Tabet diz, o oficial é cheio de “istas” – ele é machista, racista, sexista e homofóbico.
“Ao mesmo tempo, é um agente da lei, então ele sabe que isso é crime e politicamente incorreto”, diz o artista, acrescentando que o personagem até tenta se desconstruir -termo usado pela esquerda para se referir a pessoas que querem se livrar dos próprios preconceitos.
“Mas imagina um policial militar de 40 anos e muitos anos e duas décadas de maus serviços nas costas. Para essas pessoas, a vida num mundo progressista e politicamente correto ainda é um desafio.”
Apesar do retrato pouco lisonjeiro, a classe policial curiosamente gosta do personagem. Tabet diz que agentes já até transformaram Peçanha em figurinha para usar em troca de mensagens no Whatsapp.
“Gostam porque, apesar da ignorância, ele está tentando melhorar. Acho que muitos policiais se veem nesse lugar.” Os PMs dizem também que o personagem lembra os seus comandantes. “Eles sempre veem uma pessoa em cargo de chefia que é muito igual, o que me deixa mais preocupado.”
O ator diz que o apelo do personagem está justamente em sua capacidade de gerar identificação. “Todo mundo já cruzou com uma autoridade que nitidamente não estava preparada para aquela função.”
Para o humorista, Peçanha funciona como um espelho no qual o público enxerga os próprios defeitos e serve como uma sátira que expõe a hipocrisia do Brasil. “Gosto de humor que gera desconforto. A gente não consegue denunciar esses problemas sem mostrá-los. Aliás, essa é uma crítica que eu faço aos setores progressistas.”
Nos últimos anos, o mundo das artes foi palco de debates acalorados sobre como retratar problemas sociais como racismo e machismo. Algumas pessoas, inclusive, defendem a exclusão ou a revisão de passagens mais sensíveis para não ofender grupos marginalizados. “Esse revisionismo histórico é uma completa idiotice”, diz o artista. “O politicamente correto é muito bom. O problema é quem faz a patrulha.”
Ele considera que o humor perdeu espaço na TV e foi vilanizado no Brasil, o que mostra um país menos democrático. “Tem aquela frase que diz que, em regimes ditatoriais, o rei mata primeiro o bobo da corte por não aceitar piadas sobre si mesmo. O Brasil está cheio de reis. Tem rei que é pastor, deputado e juiz. Mas está na hora de os bobos colocarem a cabeça para fora e reaparecerem.”
Formado em publicidade, Tabet começou a fazer sucesso entre os internautas no começo dos anos 2000, quando criou o blog Kibe Loco para aliviar a rotina maçante em um banco de investimentos.
Com piadas ácidas sobre políticos, celebridades e times de futebol, o projeto chegou a ter uma média de 300 mil visitantes por dia e posicionou o artista como um dos pioneiros do humor na internet.
Em 2012, ajudou a criar o Porta dos Fundos, canal de humor no Youtube que se tornou um fenômeno e catapultou não só a carreira dele, mas a de nomes como Fábio Porchat e Gregório Duvivier.
Em 2020, a trupe se viu no meio de uma polêmica após lançar na Netflix o especial de natal “A Primeira Tentação de Cristo”, em que Jesus é retratado como gay.
Após protestos de setores mais conservadores, a Justiça do Rio censurou a atração e mandou a plataforma tirar o episódio do ar “para acalmar os ânimos”. No entanto, o Supremo derrubou a medida e liberou a exibição da obra.
Tabet diz que todo humor é válido desde que seja engraçado e que só tolera ser censurado pela própria consciência. “Hoje em dia, se você discorda de alguém, vira inimigo da pessoa. O humor é uma maneira ótima de ensinar, mas com graça e suavidade. Ele não só serve para anestesiar, mas também para informar.”
Protocolo de Segurança