20/02/2025

Bruce LaBruce relê obra de Pasolini em ficção científica 'O Intruso'

Por Sérgio Alpendre/Folhapress em 20/02/2025 às 10:38

Reprodução
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O controverso cineasta canadense Bruce LaBruce está de volta com “O Intruso”, em cartaz nos cinemas paulistanos. O diretor faz um cinema politicamente escandaloso e escandalosamente político. O sexo explícito, ou quase, costuma ser sua arma para chocar.

Neste filme, ele faz sua leitura particular, em modo de ficção científica, de “Teorema”, uma das obras mais impactantes de Pier Paolo Pasolini. LaBruce praticamente faz hoje o que Pasolini não podia fazer em sua época. A pergunta é: Pasolini faria hoje?

E aí estamos diante da encruzilhada. O sexo explícito ainda choca alguém? Certamente, mas quem pode ser alvo do choque provavelmente nem vai saber que o filme existe. Os espectadores de cinema autoral, por outro lado, tendem a passar ilesos por esse tipo de provocação. Para eles, é sinal de modernidade.

Era diferente em 1975, quando Pasolini dirigiu “Saló, ou os 120 Dias de Sodoma”, e Paul Vecchiali dirigiu “Change Pas de Main”. Ambos têm cenas de choque visando incomodar plateias burguesas, chacoalhar as estruturas da sociedade patriarcal monogâmica.

O primeiro, citado explicitamente em “O Intruso”, continuava no único caminho possível, a destruição da sociedade fascista, após um dos textos mais belos já escritos por um cineasta, “Abjuração da Trilogia da Vida”, no qual renegava seus três longas anteriores por terem sido absorvidos pela sociedade de consumo.

O filme de Vecchiali procurava no sexo explícito novas representações das relações de poder. Era um poderoso grito de liberdade dentro de um contexto que inspirava tentativas mais arriscadas de comunicação com a sociedade.

O mundo era diferente, o cinema era muito mais popular que hoje e muitos que frequentavam as salas poderiam se chocar com esses filmes cheios de talento e provocação.

Nos dias atuais, o sexo explícito soa como pregação para convertidos, que se regozijam no cinema ao pensar que os velhos defensores dos bons costumes estariam sendo atacados com essas imagens.
“O Intruso”, contudo, tem uma força política que não deve ser subestimada. Começa com um discurso conservador, ouvido como numa transmissão antiga de rádio, de que os imigrantes chegam com o propósito de “destruir nossas famílias”. O que iremos ver desde então é justamente um imigrante destruindo a unidade familiar pelo domínio sexual.

O imigrante chega nu, aprisionado numa enorme mala, nas margens do rio Tâmisa. E vem acompanhado de efeitos de luzes e ruídos de interferência, como um alienígena, a nos lembrar de que a palavra “alien” serve para designar tanto um estrangeiro quanto um alienígena.

Esse tipo de brincadeira Labruce faz a rodo nos seus filmes. Mas aqui podemos entender que vai além e mostra o imigrante como um alienígena de fato, que semeia um mundo mais libertário, portanto mais perigoso para os conservadores.

O diretor, contudo, ainda tem umas cartas na manga. Ao fazer com que outros imigrantes, interpretados pelo mesmo ator, saiam de outras malas espalhadas pela cidade, mesmo que depois os abandone para acompanharmos somente o primeiro, ele automaticamente coloca o protagonista como um representante de todos os imigrantes.

Daí para entendermos que a disseminação da liberdade extrema de costumes começou é só um pulo, que Labruce autoriza com diálogos não naturalistas, música eletrônica e imagens estilizadas.

O teor libertário é mesmo radical, mais pelo que é dito ou escrito na tela do que pelas cenas de sexo. Segundo uma fala do filme, comer fezes é tão libertador quanto transar com o próprio pai, entre outras provocações.

O humor é outro ingrediente no jogo político. Artifícios como câmera acelerada, tela dividida em quatro cores, intertítulos piscando e reações exageradas de personagens surgem como peças de escárnio da alta sociedade.

Há brincadeiras com nomes de filmes: “O Discreto Charme da Burguesia” vira “O Discreto Charme Carnal da Burguesia”. “Eat the Rich”, pouco conhecida comédia inglesa com canibalismo, lançada em VHS no Brasil no final dos anos 1980, vira “Eat Out the Rich”, acentuando a ideia do “comer” para o ato sexual.

“O Intruso” mostra que as forças que podem transformar a sociedade conservadora vêm de fora. Talvez por isso refugiados e imigrantes sejam tão combatidos por quem tem medo de perder seus privilégios.

O Intruso

  • Avaliação: Bom
  • Quando: Nos cinemas e na plataforma Reserva Imovision
  • Classificação: 18 anos
  • Elenco: Bishop Black, Macklin Kowal, Amy Kingsmill
  • Produção: Reino Unido, 2024
  • Direção: Bruce LaBruce
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